sábado, 8 de junho de 2019

Quatro Séculos de Modas e Costumes


Carnaval de Ilusões


A Vila desce colorida


Alegoria da Caverna da República de Plantão


E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.
João 8:32


Caramba 



Nomes da incerteza
*José de Souza Martins:
- Valor Econômico

Capitalismo sem ética não é capitalismo, é crime organizado. Economia que gera 13 milhões de desempregados não fruto de competência empresarial, é falta de respeito pelo outro

Desde o dia 1º de janeiro, a formação da opinião pública no Brasil oscila nas incertezas de palavras redefinidas pelo conflito ideológico. Com as que ontem se queria dizer uma coisa, hoje se quer dizer outra. Conceitos viraram preconceitos e, nessa forma, encheram a boca dos que dizem o que já não sabem. O não saber ganhou aqui uma linguagem.

Por seu lado, os que ouvem esse dizer indizente estão mais confusos do que suportam, acostumados que estavam com uma linguagem simples e clara que todos conheciam. A nova linguagem é a da incerteza com que nos fazem pensar sem querer e querer sem pensar. O real está desencaixado, anômico.

Essa linguagem nos tem sido apresentada como se fosse a de uma nova era, direita e de direita, contra uma era só de esquerda. Mas estamos confusos até mesmo quanto ao que quer dizer direita e, mais ainda, quanto ao que quer dizer esquerda. Fica evidente que quem perdeu o poder, perdeu-o porque sua fala foi esvaziada pelo desenraizamento. Em todas as eleições dos últimos anos, as esquerdas foram derrotadas porque não sabiam dizer o que eram. Nem ao que vinham. Perderam-se no desencontro entre linguagem e alianças esquisitas.

A confusa direita acabou revelando que é de direita sem saber o que a direita é, votada por um eleitorado que tampouco o sabe. Tudo o que as esquerdas e o centro fizeram no poder passou a ser avaliado e concebido como o que deveria ser banido eleitoralmente. O não dessa direita é apenas um não sem um sim alternativo.

Os partidos, de esquerda e de direita, esqueceram-se de que a classe média é apenas média. Como toda média, é apenas um ponto na escala de vacilações da sociedade. Para a classe média, direita é o setor político que pode saciar o que a esquerda não lhe deu, no muito mais de sua voracidade, do que queria e até do que a esquerda dissera que carecia.

Essa direita, que não é uma convicção político-ideológica, é em boa parte apenas disposição para seguir quem personifica os urros do ressentimento. Esta confusa direita do poder foi criada na corrosão dos partidos no processo eleitoral, que emergiu das urnas com uma cara desconhecida, sem doutrina nem direção.

Portanto, nesse vocabulário dominado pela incerteza, os significados vão sendo inventados de um dia para o outro. Vários dos membros do governo não têm hoje, sobre o próprio governo, as mesmas certezas que diziam ter no dia 1º de janeiro. Mesmo o presidente da República vem desenvolvendo a peculiar linguagem de desdizer no dia seguinte o que dissera no dia anterior. O vocabulário da dúvida está implantado na alma do poder. É uma técnica antidemocrática de dominação.

Não só lá, mas também nos diferentes âmbitos da sociedade. Num grupo de conversação, testemunhei alguém dizer que a coisa está ficando preta. Na hora, alguém da seita dos politicamente corretos reagiu e repreendeu quem dissera a verdade ao definir a situação com a cor que melhor cabia. "Isso é racismo", acrescentou.

As nuvens negras anunciadoras de temporal, raiz desse dito popular, são apenas nuvens negras. Na boa e quase sempre correta e poética meteorologia popular, esse dito não ofende ninguém, não discrimina as nuvens e nada diz além do fato de que, provavelmente, vai cair um temporal. Ou, em português claro: vai chover, independentemente da cor de quem prognostica ou a de quem se molhará.

Nesse quadro de mudança de sentido das palavras, no incômodo que nos provoca o fato de que o que dizemos já não é o que queremos dizer, há um efeito desconstrutivo e revelador, formador de consciência social e política: capitalismo sem ética não é capitalismo - é crime organizado. Por isso está mais nas páginas policiais dos jornais do que nas páginas econômicas.

Economia que gera 13 milhões de desempregados e fome não é fruto de ciência e competência empresarial, é falta de respeito pelo outro. Partido político sem ética não é partido político: é quadrilha. Por isso, alguns dos nossos estão mais nas mesmas páginas policiais do que nas páginas políticas. Movimentos sociais que não reconhecem o direito à singularidade do outro não são movimentos sociais: são hordas. Por isso escaparam da linha reta do possível para cair prisioneiros do aparelhismo partidário, o peleguismo carneiril da renúncia ao protagonismo histórico a que os simples têm direito.

Socialismo sem liberdade de pensamento, de crítica, de individualidade, de discordância, não é socialismo: é barbárie. Democracia em que todos são iguais perante a lei, mas em que alguns são mais iguais, os de "A Revolução dos Bichos", de George Orwell, não é democracia. É usurpação política. Governo em que os governantes se acham acima da lei e da ordem não é governo, é golpe.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano” (Contexto).








"Que é a verdade?" (João 18:38).





Mito da Caverna de Platão (resumo)
Resumo do mito da caverna de Platão, o que é, metáfora, teoria e ideia

O que é o mito 

O Mito da Caverna, também conhecido como “Alegoria da Caverna” é uma passagem do livro “A República” do filósofo grego Platão. É mais uma alegoria do que propriamente um mito. É considerada uma das mais importantes alegorias da história da Filosofia. Através desta metáfora é possível conhecer uma importante teoria platônica: como, através do conhecimento, é possível captar a existência do mundo sensível (conhecido através dos sentidos) e do mundo inteligível (conhecido somente através da razão). 

O Mito da Caverna

O mito fala sobre prisioneiros (desde o nascimento) que vivem presos em correntes numa caverna e que passam todo tempo olhando para a parede do fundo que é iluminada pela luz gerada por uma fogueira. Nesta parede são projetadas sombras de estátuas representando pessoas, animais, plantas e objetos, mostrando cenas e situações do dia a dia. Os prisioneiros ficam dando nomes às imagens (sombras), analisando e julgando as situações.

Vamos imaginar que um dos prisioneiros fosse forçado a sair das correntes para poder explorar o interior da caverna e o mundo externo. Entraria em contato com a realidade e perceberia que passou a vida toda analisando e julgando apenas imagens projetadas por estátuas. Ao sair da caverna e entrar em contato com o mundo real ficaria encantado com os seres de verdade, com a natureza, com os animais e etc. Voltaria para a caverna para passar todo conhecimento adquirido fora da caverna para seus colegas ainda presos. Porém, seria ridicularizado ao contar tudo o que viu e sentiu, pois seus colegas só conseguem acreditar na realidade que enxergam na parede iluminada da caverna. Os prisioneiros vão o chamar de louco, ameaçando-o de morte caso não pare de falar daquelas ideias consideradas absurdas.


Mito da Caverna: uma das principais alegorias da história da Filosofia



O que Platão quis dizer com o mito

Os seres humanos têm uma visão distorcida da realidade. No mito, os prisioneiros somos nós que enxergamos e acreditamos apenas em imagens criadas pela cultura, conceitos e informações que recebemos durante a vida. A caverna simboliza o mundo, pois nos apresenta imagens que não representam a realidade. Só é possível conhecer a realidade, quando nos libertamos destas influências culturais e sociais, ou seja, quando saímos da caverna.





Carnaval de Ilusões
Martinho da Vila



Ciranda cirandinha
Vamos todos cirandar
Vamos dar a meia volta
Volta e meia vamos dar

Fantasia
Deusa dos sonhos esteja presente
Nos devaneios de um inocente
Ó soberana das fascinações
Põe os seres do teu reino encantado
Desfilando para o povo deslumbrado
Num carnaval de ilusões

Na doce pausa
Dos folguedos infantis
Repousam a bola
E a bonequinha querida
No turbilhão do carrossel
Da alegre vida
Morfeu embala a criança tão feliz
Como num sonho encantador
Viaja ao mundo da fabulação

Terra da riqueza
E do fulgor
De tanta beleza
E do esplendor

Guiadas pela fada ilusão
Se juntam lendárias figuras
Personagens de leituras
Revividos na memória
Que ajusta ao imperfeito
A perfeição dos conceitos
De deleitosas histórias

Neste clima extasiante
O cortejo deslumbrante
Tudo envolve ao despertar
E ao mundo de verdade
Sem saber a realidade
Retorna o petiz a cantar
Ciranda, cirandinha
Vamos todos cirandar
Vamos dar a meia volta
Volta e meia vamos dar
Composição: Martinho da Vila




4 – Carnaval de ilusões: renovação do samba-enredo através do partido-alto
Após cantar Boa noite, Martinho da Vila aparece novamente conversando com seus ouvintes. Em um comentário muito rápido, o sambista anuncia o próximo samba a ser interpretado: "Em 67, a Vila chegou na (sic) cidade com um enredo genial! Gabriel e Dario bolaram um carnaval de ilusões, sonhado por uma criança" (VILA, 1969, lado A, faixa 1, 1min24s a 1min34s). Imediatamente começa a cantar o refrão de Carnaval de ilusões, samba-enredo composto para o desfile da Vila Isabel em 1967. Sua letra, escrita por Gemeu, fazia referências ao universo infantil, criando um clima de sonho e de imaginação. A canção (Ex.3) se inicia citando a cantiga de roda Ciranda, cirandinha:
Enquanto o coro feminino repete esse refrão, Martinho declama o texto original de Gemeu, onde se percebem várias figuras do mundo infantil – os folguedos infantis, a bola, a bonequinha e o carrossel – embalados por um clima de sonho e imaginação ("Fantasia, deusa dos sonhos esteja presente", "seres do teu reino encantado").
Fantasia, deusa dos sonhos esteja presente
Nos devaneios de um inocente
Ó soberana das fascinações
Põe os seres do teu reino encantado
Desfilando para o povo deslumbrado
Num carnaval de ilusões
Na doce pausa dos folguedos infantis
Repousam a bola e a bonequinha querida
No turbilhão do carrossel da alegre vida
Morfeu embala a criança tão feliz
Como num sonho encantador
Viaja ao mundo da fabulação
(VILA, 1969, lado A, faixa 1, 1min46s a 2min21s)
Depois disso, Martinho volta a cantar (Ex.4):
Enfim, à semelhança do que havia acontecido anteriormente, o coro feminino repete esse trecho da canção, enquanto Martinho declama outra parte do texto original de Gemeu, trazendo novos elementos ligados à infância (fada, figuras lendárias, personagens de leituras):
Guiadas pela fada Ilusão
Se juntam lendárias figuras
Personagens de leituras
Revividos na memória
Que ajusta ao imperfeito
A perfeição dos conceitos
De deleitosas histórias
(VILA, 1969, lado A, faixa 1, 2min38s a 2min55s)
O fato de Martinho declamar trechos dessa canção ao invés de cantá-la por inteiro sugere que ele pretende destacar o texto de Gemeu. Isso se deve ao fato de que a temática desenvolvida por Gemeu e transformada por Martinho em samba-enredo era algo diferenciado em relação ao que usualmente acontecia nesse segmento do samba. Isso porque até então os sambas-enredo costumavam abordar "grandes" personagens ou "grandes" eventos da história brasileira, repertório que ficou conhecido como "samba-lençol"14. Para se ter um exemplo disso, no mesmo ano em que a Vila desfilou com Carnaval de ilusões, a Mangueira sagrou-se a campeã do carnaval com o samba-enredo O mundo encantado de Monteiro Lobato. Essa referência ao "mundo encantado", presente no título desse samba-enredo, sugere que a canção vá homenagear o escritor em questão por sua produção infanto-juvenil. Contudo, ao longo de seu texto, são muito breves as alusões a esse universo da fantasia, que ficam restritas ao trecho "Relembro / Aquele mundo encantado / Fantasiado de dourado / Oh, doce ilusão / Sublime relicário de criança". De resto, a composição consiste em uma série de elogios ao "escritor genial", "grande sonhador", possuidor de "uma luz divinal", de uma "escritura emocionante" e criador de "obras imortais", "contos triunfais" e "personagens fascinantes". Mesmo abordando algo que se liga ao universo infantil, a canção não priorizou a descrição desse universo, tal qual acontece no samba-enredo de Martinho, mas se preocupou em exaltar (monumentalizar) a figura de Monteiro Lobato. Do ponto de vista harmônico, não se observa um diatonismo estrito, mas aparecem algumas Dominantes individuais e o acorde de Subdominante menor, que ampliam um pouco a tonalidade15.
Por sua vez, no Carnaval de ilusões de Martinho da Vila observa-se um tratamento muito mais simples, tanto poética quanto musicalmente. Em termos narrativos, o sambista se afasta de um tratamento monumental ao abordar um tema ligado ao universo infantil, ao cotidiano. Musicalmente, como anteriormente exposto, Martinho se mantém naquele loop de acordes estritamente diatônico. Tais características, cabe lembrar, foram repetidas pelo cancionista em outros sambas-enredo que compôs para a Vila Isabel.
Esse pode ser um indício da aproximação que Martinho promoveu entre o samba-enredo e o partido-alto. Ou, na verdade, de uma reaproximação. Isso porque o partido-alto, conforme Nei Lopes, é composto por um refrão, cantado em coro, e uma parte solada, com versos improvisados (LOPES, 1992, p.51) e que o samba composto para o carnaval até o início dos anos 1930 também apresentava uma segunda parte aberta à improvisação de versos (FENERICK, 2005, p.119). Contudo, a partir das intervenções da política varguista no repertório carnavalesco, que objetivavam tirar a imprevisibilidade do samba e fazer com que ele passasse a veicular temas nacionais, o samba-enredo trilhou um caminho independente do partido-alto. É nesse sentido que se pode pensar que Martinho tenha reaproximado esses dois segmentos e, com isso, substituiu o caráter monumental que o samba-enredo havia assumido pela simplicidade do partido-alto.
Em decorrência disso, Martinho foi saudado por alguns críticos musicais e jornalistas do período como um importante renovador do samba-enredo. É o que se percebe, por exemplo, com Tárik de Souza, que afirma que "as modificações que [Martinho] introduziu com a trilogia Carnaval de Ilusões (67), Quatro Séculos de Modas (68) e Iaiá do Cais Dourado (69) foram cruciais" (SOUZA, 1983, p.166)16. O autor destaca ainda que não eram apenas nas letras que Martinho teria realizado transformações:
O samba enredo iniciava, desde Martinho, um processo de confluências e modificações que acelerariam seu ritmo, aproximando-o da velocidade da marchinha e dos chamados sambas-de-embalo ou empolgação, que transformariam esse gênero no dominante do carnaval. (SOUZA, 1983, p.166-7)
Contudo, Tárik observa que Martinho não foi renovador somente no samba-enredo, mas que introduziu inovações no próprio partido-alto:
Numa posição paralela com Jorge Ben que fundiu o samba ao cadenciado maracatu, com uma pitada de América Central e rhythm & blues americano, Martinho apanhou o aleatório partido alto, sempre complementado no ato por versos improvisados (o que é obviamente impossível numa reprodução gravada) e cristalizou-o, dando-lhe estrutura definida e formato identificável, tal como Luiz Gonzaga fez com o difuso baião nordestino. Martinho, portanto, na célebre classificação de Ezra Pound é um inventor, que deu origem a forma conceitualmente nova, que já não guarda senão semelhança com o original. (SOUZA, 1983, p.167-8)
De volta ao fonograma analisado, verificamos que ele apresenta certa unidade entre suas duas partes, uma vez que, antes de apresentar o lado renovador de Martinho presente em Carnaval de ilusões, foi enfatizado o caráter "autêntico" de sua produção musical, mostrando sua ligação com o carnaval e as escolas de samba. Percebe-se, assim, que, para ser visto como alguém capaz de renovar, foi preciso que Martinho se integrasse ao circuito "tradição" para se legitimar. Nesse sentido, ganha destaque o conjunto de ações que acompanhou a trajetória do sambista ao longo da década de 1970 no sentido de aproximá-lo cada vez mais do pólo da "autenticidade" do samba.





Caramba
Martinho da Vila



Fala fala falador
Não lhe dou bola porque eu sou bamba
Malha, malha malhador
Que não aceita a evolução do samba
A minha Vila deslumbrou
Naquela manhã de carnaval
Todo povo incentivou
A ciranda cirandinha
No desfile principal


Só a comissão
Não viu cadência numa grande bateria
Nem se comoveu
Com a beleza do desfile-fantasia
Caramba, caramba
Nem o Chico entendeu
O enredo do meu samba


Mas esse ano eu vou deixar cair
Não quero mais ficar com o quarto lugar
Rapaziada vai se reunir
E a minha Vila vai descer pra clarear
Fala, fala falador.





Ciranda Cirandinha
Martinho da Vila




Fala fala falador
Não lhe dou bola porque eu sou bamba
Malha, malha malhador
Que não aceita a evolução do samba
A minha Vila deslumbrou
Naquela manhã de carnaval
Todo povo incentivou
A ciranda cirandinha
No desfile principal


Só a comissão
Não viu cadência numa grande bateria
Nem se comoveu
Com a beleza do desfile-fantasia
Caramba, caramba
Nem o Chico entendeu
O enredo do meu samba


Mas esse ano eu vou deixar cair
Não quero mais ficar com o quarto lugar
Rapaziada vai se reunir
E a minha Vila vai descer pra clarear
Fala, fala falador
Composição: Martinho da Vila



5 – Caramba: uma nova e incompreendida "modernização" para o samba
Após destacar o seu pertencimento à "tradição" do samba com Boa noite e apresentar seu caráter renovador com Carnaval de ilusões, Martinho faz seu terceiro e último comentário no fonograma antes de iniciar a também última canção. Tal comentário ainda se remetia ao samba-enredo Carnaval de ilusões, aludindo à recepção que o mesmo obteve no desfile em que foi apresentado:
Botar música nessa poesia do Gemeu não foi mole, não
E os críticos meteram o pau no samba-enredo
E a Vila perdeu o carnaval
O meu amigo Chico Buarque de Hollanda dormiu
O resto da comissão não entendeu nada
No dia do resultado, eu fiz o meu primeiro samba de protesto
(VILA, 1969, lado A, faixa 1, 3min57s a 4min17s)
Se o fato de ter anteriormente declamado trechos de Carnaval de ilusões dava destaque à poesia de Gemeu, agora, com o início desse comentário, Martinho chama a atenção de seu ouvinte para sua própria habilidade enquanto compositor ao destacar a dificuldade de transformar aquele texto em um samba-enredo. Por isso, o sambista reclama do pouco reconhecimento que recebeu por parte da comissão julgadora – da qual também participava Chico Buarque – ao realizar essa empreitada. Esse aspecto se encontra desenvolvido no texto de sua canção Caramba, que se segue ao comentário já apresentado. Vejamos sua primeira parte (Ex.5):
Nas duas primeiras frases desse samba ("Fala, fala, falador / Não lhe dou bola porque eu sou bamba"), Martinho diz não estar incomodado diante das más avaliações que recebeu, uma vez que ele é um detentor da "tradição" do samba, visto que se afirma como um bamba. Por sua vez, as frases seguintes ("Malha, malha, malhador / Que não aceita a evolução do samba") completam o discurso do cancionista: como um "autêntico" sambista, ele pode dar um passo à frente no samba, algo que acaba não sendo compreendido ou aceito pelos ouvintes. Isso se encontra reforçado no juízo que Martinho faz sobre a comissão julgadora do desfile, tal como se apresenta na segunda parte de Caramba (Ex.6):
Nesse posicionamento de Martinho, pode-se perceber alguma ressonância daquela figura romântica do gênio:criador, inovador, à frente de seu tempo, e que acaba sendo incompreendido por seus contemporâneos17. Em uma matéria de jornal, localizamos uma citação de Martinho na qual o sambista toma para si essa figura de maneira ainda mais clara. Na verdade, o texto dessa matéria trazia críticas ao show do disco Rosa do povo, de Martinho (VILA, 1977, LP). Ainda assim, o jornalista apresentou a fala do próprio sambista, que se defendeu das críticas apoiando-se nessa figura do artista incompreendido:
O espectador paga 60 cruzeiros, senta-se em poltronas desconfortáveis e tem início o show: durante três minutos um gravador reproduz a fita em que Martinho declama o poema Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade. Mais tarde, a dose seria repetida: do gravador, no ambiente todo escuro, ouvem-se, por cinco minutos, as vozes de Martinho e João Nogueira cantando um samba da dupla, João e José. Por que não a apresentação do poema e da música ao vivo? Afinal, ninguém ali entrou para ouvir discos. "O artista é assim mesmo", responde Martinho da Vila, "tem umas ideias diferentes e não pode ficar preocupado se as pessoas vão entender ou não" (SANTOS, 1977, p.92).
Interessante perceber que, se o jornalista em questão não assumia o partido de Martinho, Tárik de Souza, por outro lado, reproduz uma visão muito próxima à do próprio sambista. Após falar sobre as inovações de Martinho no samba-enredo e no partido-alto, o crítico comenta:
Todas essas mudanças mal percebidas ou pouco analisadas dão medida do grau de marginalização cultural a que o samba ainda continua relegado. Apesar de ter sido projetado através da via comum dos festivais, [...] o partido alto de Martinho não pegou carona, sequer como pingente, na chamada linha evolutiva da música popular brasileira. [...] As modificações introduzidas de dentro pelos próprios sambistas com a incorporação de outras influências brasileiras – como são os casos de Paulinho da Viola e Martinho da Vila – permanecem à parte dessa evolução, na verdade paralela e integrada (SOUZA, 1983, p.167, grifo no original)
Como um "autêntico" artista do universo do samba, que consegue inovar em virtude de seu conhecimento e domínio da "tradição", mas que não é compreendido por seus pares, Martinho finaliza essa canção com um pequeno refrão que retoma a crítica, presente já no comentário que a antecede, a um "monstro sagrado"18 da MPB, Chico Buarque.

Ex.7

Os versos "Nem o Chico entendeu / o enredo do meu samba" trazem uma mensagem bastante forte: nem mesmo um cancionista tão reconhecido como Chico Buarque teria sido capaz de perceber as inovações que Martinho estava fazendo. Nesse sentido, Martinho estaria se colocando à frente de Chico, visto que ele representaria a renovação desse repertório, enquanto que este último estaria ainda preso a algum cânone.
Mais do que isso, cabe perceber o novo significado que Martinho atribui ao protesto. É sabido que, para a MPB, a expressão "canção de protesto" era empregada para rotular um repertório engajado, que denunciava injustiças sociais e políticas, convidando para a revolução. Por sua vez, Martinho da Vila, ao caracterizar sua canção "Caramba" como um "samba de protesto", o faz com um novo sentido, uma vez que ele não está reclamando sobre os problemas do "povo", mas está, de certo modo, contestando a legitimidade e a avaliação do júri, inclusive de Chico Buarque. De modo mais amplo, pode-se dizer que o "inimigo" de Martinho nessa canção não é o latifúndio, o imperialismo ou o governo militar, tal qual acontecia na canção de protesto, mas é a própria MPB, que, conforme Napolitano, funcionava como um "totem-tabu" da música popular:
Como "totem", sugere cânones, modelos, percepções estéticas e informa valores ideológicos. Como "tabu", delimita, veta e discrimina hierarquias culturais, prescrevendo possibilidades e interdições de escuta (NAPOLITANO, 2005, p.129).






Quatro Séculos de Modas e Costumes
Martinho da Vila




A Vila desce colorida
Para mostrar no carnaval
Quatro séculos de modas e costumes
O moderno e o tradicional
Negros, brancos, índios
Eis a miscigenação
Ditando a moda
Fixando os costumes
Os rituais e a tradição

E surgem tipos brasileiros
Saveiros e batedor
O carioca e o gaúcho
Jangadeiro e cantador

Lá vem o negro
Vejam as mucamas
Também vem com o branco
Elegantes damas

Desfilas modas no Rio
Costumes do norte
E a dança do sul
Capoeira, desafios
Frevos e maracatu

Laiaraiá, ô
Laiaraiá

Festa da menina-moça
Na tribo dos carajás
Candomblés lá da Bahia
Onde baixam os orixás

É a Vila que desce!
Composição: Martinho da Vila





Quatro séculos de modas e costumes
Martinho da Vila
A Vila desce colorida
Para mostrar no carnaval
Quatro séculos de modas e costumes
O moderno e o tradicional
Negros, brancos, índios
Eis a miscigenação
Ditando a moda
Fixando os costumes
Os rituais e a tradição
E surgem tipos brasileiros
Saveiros e batedor
O carioca e o gaúcho
Jangadeiro e cantador
Lá vem o negro
Vejam as mucamas
Também vem com o branco
Elegantes damas
Desfilas modas no Rio
Costumes do norte
E a dança do sul
Capoeira, desafios
Frevos e maracatu
Laiaraiá, ô
Laiaraiá
Festa da menina-moça
Na tribo dos carajás
Candomblés lá da Bahia
Onde baixam os orixás
É a Vila que desce
Compositores: Martinho Ferreira
Letra de Quatro séculos de modas e costumes © Irmaos Vitale SA Industria E Comercio





Referências

http://gilvanmelo.blogspot.com/2019/06/jose-de-souza-martins-nomes-da-incerteza.html
https://www.estudosdabiblia.net/d2.htm
https://www.suapesquisa.com/uploads/site/156x133_mito_da_caverna.gif
https://www.suapesquisa.com/platao/mito_da_caverna.htm
https://youtu.be/3K99Ie8xsuY
https://www.letras.mus.br/martinho-da-vila/285160/
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-75992013000200016
https://youtu.be/WRTXL29c5wQ
https://www.letras.com.br/martinho-da-vila/caramba
https://youtu.be/o1RQWPJxWXE
https://www.letras.mus.br/martinho-da-vila/285161/
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-75992013000200016
https://youtu.be/9hrNoRf7rBk
https://www.letras.mus.br/martinho-da-vila/285174/
Letra de Quatro séculos de modas e costumes © Irmaos Vitale SA Industria E Comercio

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