sábado, 20 de maio de 2017

A RODA

“Em muitos dias de ócio lamentei o tempo perdido. Mas ele não foi de todo perdido. O Senhor guardou em suas mãos cada instante de minha vida.
Escondido no coração as coisas, Ele estava alimentando as sementes para que sejam rebentos, os botões para que sejam flores e amadurecendo as flores para que sejam frutos.
Eu dormia cansado em meu leito, indolente, julgando que todo o trabalho tivesse cessado. Acordei de manhã e encontrei repleto de milhares de flores o meu jardim.”
(Tagore)

Rabindranath Tagore foi um escritor nascido em Calcutá, na Índia  no ano de 1861.
Ainda criança manifestou sua vocação para a literatura. Escreveu, ao longo de sua vida, diversos poemas, contos, romances e ensaios, tudo na língua bengali.
Seus versos se caraterizam pela sensibilidade, humanidade e lirismo.
O escritor indiano se tornou muito celébre e seu sucesso lhe valeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1913.
Através de Tagore a cultura da Índia foi levada para os quatro cantos do mundo.
Vale a pena ler esse notável escritor, considerado “o grande mestre” por Mahatma Gandhi.


A roda movera-se a seu desfavor. Maldito Jô.

- Nada disso. O covarde quando simula o medo acaba por senti-lo


96. A RODA

A princípio era uma espuma parda que lhe escapava pela boca. Depois, nauseado, Joel My Friend se contraiu numa ânsia e sujou o seu jaleco de feirante. Começava a tremer. Não percebeu o vômito. Dando as costas para o bar, ele desafiou a noite, encarando-a. No ar, um calor de pneus esfregados. Mais a neblina.
Rodrigues viu com dureza aquele medo perigoso. A farsa se transformava em realidade. Sempre gostou de Joel My Friend. O rapaz se virava direito com a faca e a corrente. Até que funcionou bem a idéia dele de botar o jaleco e pintar de surpresa com uma raiva de dopado. Muito bom. Pelo menos uma garçonete desmaiou. Na próxima jogada, ele usaria um Ina 32, por merecimento. Rodrigues alertou:
- Cuidado para não estragar tudo, Jô.
- Vamos correr. . . - gritou Joel My Friend.
- Nada disso. O covarde quando simula o medo acaba por senti-lo, e isso desgostava Rodrigues. Fechando a mão no cano do revólver, ele parou sob a porta. Com uma puxada brusca, desenrolou a rede de ferro. Foi golpeando a coronha em cima da chave para entortá-la na fenda. Espiou a avenida. Uma fumaça rosada se deslocava atrás de Joel My Friend. Este bateu os pés na lajota. Rodrigues escondeu entre as latas e os pacotes, no fundo da caixa de papelão, a bolsa marrom do revólver e do dinheiro, com a correia enrolada. Ordenou:
- Segure firme esse embrulho - e indicava com o queixo o cartucho do minimercado, no degrau. - Eu carrego a caixa. Vamos andar normalmente até a esquina. Lá a gente se manda.
Os sinais luminosos pulsavam entre as árvores cor de cinza. No segundo pavimento, o negro de chapéu amassado empurrou a veneziana e acendeu o cigarro com o isqueiro. O furgão entrava no pátio.
- Agora estou vendo tudo claro - queixou-se Joel My Friend. - Não era preciso deixar o carro tão longe. Não vamos conseguir chegar até o carro.
- Cale a boca. Limpe a sua boca. Olhe como ficou o jaleco. Eu não podia estacionar na avenida o Volks do japonês. Nem troquei as placas.
O rapaz apertou o cartucho contra o estômago. Tinha consciência de seu medo e isso o atormentava. O trânsito pela Radial Leste movia-se como cobra cautelosa.
- Mais depressa. Mais depressa.
- Entenda. Vai demorar o alarme. Temos tempo.
Joel My Friend cuspiu na calçada.
- Dane-se. Os caras não vão dormir naquele banheiro o resto da vida. O que aconteceu com as suas pernas? Vamos correr.
Atento e calmo, Rodrigues balançou a cabeça.
- É. Não se deve mesmo ter confiança em passador de maconha.
- Mas eu avisei que o meu negócio não era assalto. Certo? Agora eu só quero sair desta podre.
- Espere, Jô.
Tenso, derrubando o pacote e rasgando-o com uma pisada, Joel My Friend colou-se ao poste. Vinha pela vidraça do porão uma claridade gasta. Longe, o alarido duma festa. A noite ampliava gritos e buzinas. Rodrigues abaixou-se.
- Juízo, rapaz.
O que foi? O outro vacilou dentro do medo.
- A polícia ... - ele pôs no rosto a aba do jaleco.
- Você ficou louco.
- Olhe. - Idiota. Não tenho que olhar coisa nenhuma - disse Rodrigues. - O japonês vai descobrir o empréstimo do Volks só de manhã cedo. Não estrague tudo, Jô.
O rapaz murmurou:
- Então, os camaradas da lanchonete...
- Garoto, não invente.
- Então. .. - ele soluçou ante o desprezo de Rodrigues. - Os otários do mercado já saíram do banheiro.
- Vamos embora devagar, Jô. Você não está sozinho. A primeira lição é controlar os nervos.
Mas, enquanto Rodrigues acomodava o embrulho na caixa, Joel My Friend saltou o gradil do canteiro e desapareceu entre dois caminhões parados. Rodrigues, sem rancor, porém na certeza da vingança, ainda percebeu o jaleco debater-se na esquina, antes de sumir de todo.
Uma perua C-14 rodava pela rua estreita. Rodrigues pensou: "E o Volks no meio do quarteirão..." Com frieza, examinou os ângulos da enrascada. "Melhorou um pouco sem o Jô", sentiu-se acuado e muito forte. Sempre fora solitário. Sob o poste, o vapor do mercúrio envolveu-o numa luz pálida e azulada. A grama crescia ao redor das pedras do passeio. Nenhum muro a separar os sobrados. A caixa de papelão tinha uma aparência proletária, quase inocente, com os sanduíches e as latas de conserva. Rodrigues aspirou o ar livre e caminhou ao encontro da viatura.
A C-14 estancou perto dele. Desengatando a marcha, o motorista comprimia o acelerador para queimar gasolina e mostrar serviço. Um tira abriu a porta do outro lado e deu a volta. Os outros ficaram no carro, espiando aquele rapaz com as compras do patrão, os ombros muito largos para a altura, o gorro de lã crespa, a jaqueta de couro esfolado, sem meias, a camisa sobrando por cima dos bolsos da calça jeans. Disse o investigador:
- Estava com muita pressa aquele sujeito.
- Parece - falou Rodrigues.
- Também me pareceu que vocês dois iam juntos - o tira divertia-se com o bagulho do rancho.
- Bem... - Rodrigues susteve nos lábios um esgar. - O programa era curtir uma sopa de legumes no meu apartamento. Na última hora o carinha se apavorou. - Rodrigues vingava-se de Joel My Friend.
- Um menino de família ... - comentou o tira.
O olhar de Rodrigues uniu-se a uma sombra. Ouviu-se o ruído duma janela a fechar-se com cuidado. Um gato afiou as unhas contra o paredão úmido. O motorista limpou o volante com um trapo de camurça. Rodrigues arriscou:
- Se o senhor quiser ver os meus documentos. .. - ele curvou o torso, sugerindo o propósito de colocar os embrulhos no chão. "Esses meganhas não estão nem aí..." Claro que havia peixe graúdo no tanque, algum bicheiro com a escrita atrasada. Dentro da perua, um tira, ao lado do motorista, fez piscar a luz alta. O investigador apoiou a mão no ombro de Rodrigues, e observando a velocidade dos carros pela Alcântara Machado, apurou o ouvido. Sem se abater, Rodrigues exibia os punhos da camisa, encardidos pelo suor urbano, o Seiko, a fita do Senhor do Bonfim, a calça de barra esfiapada, o jeito amarfanhado de quem dormia de roupa, o mocassim de fivela e, no sorriso, uma vergonha humilhada. Um hippie póstumo, carregando as compras do empório para o cortiço. O investigador acariciou-o na orelha. Um tira avisou:
- Aconteceu alguma coisa por lá.
Antes de entrar na perua, o investigador encolheu o dedo repressivo.
- Rapaz, cuidado com as geladas.
Rodrigues andou devagar até o Volks.
- Mais uma batida ... - ele insinuou casualmente. - Sabe, no largo da messiânica tem um sinaleiro pifado desde a semana passada.
Bateram a porta da viatura sem estrondo. Eram civis. Quando a C-14 se aproximava da esquina, os alarmes da noite soando, Rodrigues abrigou-se no Volks. Jogou o bagulho no banco traseiro e pegou a bolsa de couro. Maldito Jô. Torceu a chave e acelerou. Tomando o rumo contrário ao dos tiras, ele sentiu a correia da bolsa no ombro. O dinheiro e o revólver pesavam agora junto a seu corpo. Meu dinheiro. Meu Taurus-38. Você não conhece a melhor arma: um revólver com balas de dinheiro. Com essa arma não se erra na pontaria. Você não faz pontaria. Basta beliscar o gatilho. A mosca procura a bala. Minha porra. Minha porra. Minha máxima porra. A sirena da C-14 atrás de mim. Já era tempo. Os meganhas dormiram até tarde. Yes, como diz o Jô. A perseguição começa.
Dali não dava para ver a perua. Pelo som da sirena, calculei em cem metros a distância entre mim e a polícia. Na calçada não cabia uma C-14, mas cabia o Volks. Agindo sem planejar demais, confiando na sorte do bom ladrão, meti as rodas na sarjeta e ultrapassei uma fila de carros. Dobrei na contramão à direita, buzinando e com o câmbio em segunda. Por ser uma rua apertada, costurei nas duas guias. Brados e xingamentos me saudavam com furor. Yes. Não me iludia. Outras viaturas se ouriçavam no mapa da Radial. Até que apareceu o Dodge-Dart prata com capota de vinil. Luz na cara do dono e uma rabeada em cima do pára-lama. Nada mais que um batismo na pintura. Na derrapada, desmontei uma banca de jornais e o toldo dum bazar. Juntou gente para apreciar o desastre. O gordo, de blazer com âncora no bolsinho, nem desligou o motor e já saiu do carro ofendendo. Palavra. Eu não topo soberbo. Com quatro pancadas, fiz vazar o Dimple dele pelas comportas. Poupei o saco desse executivo para a estagiária. A sirena. A sirena me perturbava. Uma turma cercava o gordo na lona. Eu boa-praça sosseguei a várzea explicando o motivo da trombada. Vocês são testemunhas. O gordo veio com o Volks na contramão. Ainda bem que o seguro paga tudo. Com licença. Me arranquei no Dodge-Dart. O susto faz palermas imediatos. Com a fratura da empáfia e da autoridade, Mr. Dimple sucumbiu no colo dos estarrecidos.
Mas a sirena ia comigo girando pelas ruas. Depois da curva, o pneu estourou na valeta, com a brecada o Dodge-Dart pulou contra o poste, deslizou no passeio, raspou um muro de heras e pôs no chão um tapume de madeira. Um casal de namorados vestiu-se gritando. A sirena por todos os lados.
Me enfiei num beco. Por uma seringueira, alcancei o telhado e uma cachorrada latiu. Escorregando ao longo dum condutor podre de ferrugem, puxei o portão. Uma parede com cacos de vidro. Uma cobertura de amianto. Ao redor de minha fuga, as janelas se iluminavam. Ao saltar, desconjuntei calha e cumeeira dum depósito. Enquanto as portas se abriam, eu corri para o fundo dum galpão. Com o pé num tanque cheio de água fétida, impulsionei o corpo e caí num matagal. Varei um terreno onde se acumulava lixo. Andava por uma rua de calçamento antigo e não escutava mais a sirena. Então, o vento enxugou o meu suor. Acariciei a bolsa marrom, com franjas absolvidas.
Lá estava um terminal de ônibus. Subi no ônibus. O motor ronronava e eu queria dormir um pouco. Antes de me deitar no último banco, eu me reconheci no vidro da janela. Oi, Rodrigues. Dormi em cima de meu orgulho.
O gordo Mr. Dimple, de esparadrapo no queixo e lenço no olho, aprontara-se para o segundo round. Convocava os soldados:
- É esse. É esse o assaltante.
Rodrigues acordou para levar um soco na cabeça. O soldado sufocava-o com a gravata e os palavrões do costume. Puseram-lhe as algemas ainda dentro do ônibus. Caindo na sarjeta, não podia acreditar, viu o toldo e a banca de jornais que desmantelara. A roda movera-se a seu desfavor. Maldito Jô.
Um tira vasculhava a bolsa. Rodrigues, de joelhos na lama viscosa, custou a compreender que o ônibus o trouxera de volta. Tentou rir entre os coturnos e as pernas fardadas. Atordoado, firmou as mãos no óleo da rua e ergueu-se sozinho.

MAFRA CARBONIERI (1935-| Brasil)

Este paulista de Botucatu, promotor público, juiz, professor de Direito e de Literatura já havia chamado a atenção da crítica (Fábio Lucas, Wilson Martins) como contista com Arma e Bagagem e Homem Esvaziando os Bolsos, ganhando alguns prêmios nos anos 60 e 70. Seus contos urbanos situam-se entre a renovação americana dos anos 30 (o policial hard-boiled, Hemingway, Damon Runyon, etc.) e a modernidade brasileira que vai de Antônio de Alcântara Machado a Marcos Rey e João Antônio. Seu enfoque, como os citados, é sempre a dos humilhados-e-ofendidos dostoievsquianos, os pequenos e grandes marginais que, quando detidos, são obrigados a "esvaziar os bolsos" antes de entrar para a cela. Coisas da cidade grande. (Seu livro O Motim na Ilha dos Si nos, de 7997, não foi devidamente percebido por nossa crítica desatenta.)

Mafra Carbonieri e a atração pela palavra
O acadêmico dá detalhes de seu livro "Diálogos e Sermões de Frei Eusébio do Amor Perfeito" e comenta sua relação com a escrita no De volta 'pra' casa



Membro da Academia Paulista de Letras, Mafra Carbonieri conversou com Alexandre Machado no De volta 'pra' casa da última sexta (29) sobre o livro Diálogos e Sermões de Frei Eusébio do Amor Perfeito.

Segundo o autor, trata-se de uma análise da política brasileira da época em que o escreveu, em 2007, que ele considera ter sofrido poucas mudanças. O tema é a falta de ética. "Não é um livro ingênuo", comenta Carbonieri.

O escritor contou ainda que desde cedo se atraiu pela palavra. "Palavra é depósito de sentido, a palavra como evasão comunicação imediata e a palavra como invasão, aquela palavra que forma o espírito", diz Carbonieri. Ele relata que o primeiro conto que leu de Machado de Assis, Quem conta um conto, o fisgou de vez para a literatura. Como sugestão de livro, ele indicou Reminiscências, de Marcelo Nocceli, lançado pela editora Reformatório.




Sarajane - A Roda

Álbum, A Roda, 1987.


Composição
Sarajane, Robson de Jesus e Alfredo Moura

Vamos abrir a roda
Enlarguecer
Vamos abrir a roda
Enlarguecer
Tá ficando apertadinha, por favor
Abre a rodinha, por favor
Abre a rodinha, por favor
Abre a rodinha

(repete)

Ô meu neguinho eu tô ligada em você
Ô meu neguinho eu tô ligada em você
Se você quiser me ver, sabe encontrar
O desejo de te ver é que me faz te amar

Vamos abrir a roda
Enlarguecer
Vamos abrir a roda
Enlarguecer
Tá ficando apertadinha, por favor
Abre a rodinha, por favor
Abre a rodinha, por favor
Abre a rodinha

(repete)

Essa dança apareceu, minha neguinha
Foi tirada de uma ave, de uma galinha
Deslizando pra frente e pra trás
Abre a rodinha, meu amor
Abre a rodinha, por favor
Abre a rodinha, eu quero ouvir
Abre a rodinha, meu amor
Abre a rodinha, eu quero ouvir
Abre a rodinha, por favor
Abre a rodinha, eu quero ver
Abre a rodinha...



Referência

https://literaturaemcontagotas.wordpress.com/tag/tagore/
https://www.e-livros.xyz/imagens/livros/os-100-melhores-contos-de-crime-e-mistrio-da-literatura-universal-flvio-moreira-da-costa.jpg
https://www.e-livros.xyz/ver/os-100-melhores-contos-de-crime-e-mistrio-da-literatura-universal-flvio-moreira-da-costa
http://culturafm.cmais.com.br/de-volta-pra-casa/home/mafra-carbonieri-e-a-atracao-pela-palavra

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