tran·si·ção |z|
(latim transitio, -onis)
(latim transitio, -onis)
substantivo feminino
1. .Ato ou efeito de transitar.
2. Passagem de um lugar, assunto, tom ou estado para outro.
3. .Trajeto.
Palavras relacionadas:
transir, transido, transicional, transe, transa, trânsito, inexoravelmente
mu·ti·lan·te
(latim mutilans, -antis, particípio presente de mutilo, -are, mutilar)
(latim mutilans, -antis, particípio presente de mutilo, -are, mutilar)
adjetivo de dois gêneros
Que mutila. = MUTILADOR
Transições
mutilantes
José de Souza Martins: Escola com educação
- Valor Econômico/Eu & Fim de Semana
É compreensível que os pais de alunos de escola
pública se inquietem com a suposta transformação da escola de seus filhos mais
em escola de ideologia do que em escola de ciências, de literatura de
humanidades. A concepção, também ideológica, de escola sem partido não deixa de
conter uma mensagem igualmente partidária tão problemática quando a da escola
como veículo de outros embates ideológicos. É difícil convencer quem quer que
seja de que o suposto partidarismo na escola é um direito do professor. Não o
é. Do mesmo modo, tampouco é um direito do professor pasteurizado deformar a
educação de seus alunos em nome da falsa concepção de que o mundo atual é um
mundo estéril, sem dilemas nem contradições.
Nessas questões, a família é a titular do direito de
assegurar que seus filhos sejam educados no marco de valores sociais, sejam
eles políticos ou religiosos, que os manterão afetivamente vinculados ao
espírito e aos sentimentos da comunidade familiar. Os pais podem ser pais biológicos,
e geralmente o são, mas são também pais sociais e espirituais. Transformar os
filhos em filhos da escola é uma usurpação, mas negar à escola e ao professor a
função histórica de agentes da civilização é outra usurpação.
Os sinais de eventual ideologização das
universidades públicas não asseguram que aqueles de seus alunos que se
destinarem ao magistério possam dar conta da missão civilizadora de suprir o
que falta à família numa sociedade de transições mutilantes como a nossa.
Milhões de brasileiros estão em trânsito do mundo
atrasado para o mundo moderno, o mundo rural já não é simploriamente rural.
Quando muito foram reeducados pelos valores deploráveis da publicidade que
patrocina programas populares. O médico, o professor, o advogado, o sacerdote e
até o engenheiro, enquanto agentes culturais, estão sendo substituídos por
atores formados na cultura de almanaque, disseminando o que é exercício ilegal
da medicina, do magistério, da advocacia, da religião, da engenharia.
A verdade é que a mentalidade popular está cada vez
mais dominada por uma cultura simplória de falsos saberes porque não contém nem
mesmo o saber legitimado pela tradição, que era o que demarcava a sabedoria dos
nossos avós da roça. Benzedeiras curavam soluço e mau-olhado; analfabetos
tinham na memória extensa biblioteca de textos clássicos da tradição popular e
contavam causos para reproduzi-los; rábulas do interior sabiam o que era justo
e o que não era; capelães de roça conheciam as rezas; analfabetos de roça
faziam casas que não caíam.
Quando os docentes da escola com partido abrem a
boca na sala de aula, a fala já vem infectada pelas simplificações e
deformações ideológicas que envenenam o conhecimento porque o privam da
objetividade que lhe é própria. Escamoteiam o princípio de que a escola existe
para ensinar a pensar e não para ensinar a repetir e imitar. Não é diferente a
fala do docente da escola sem partido porque o vazio de que é porta-voz também
está infectado pela falsa neutralidade de um silêncio que não é neutro, um cala
a boca que não educa.
É verdade que a família da sociedade de transição
não tem como se resguardar do esvaziamento que caracteriza a modernidade de
feira livre e de botequim que vem tomando conta da sociedade brasileira em
todos os campos. Também ela se apoia numa cultura de valores mutilados pelas
perdas originadas da mudança social que a alcança. E pelas infiltrações
substitutivas que vêm da cultura de tolices, mercantilizadas pela indústria da
manipulação ideológica, seja ela política, religiosa ou comercial. Um número
grande de famílias não tem condições de se defender dos ataques e agressões que
vem tanto da escola sem partido quando da escola com partido.
A grande luta pela educação não está acontecendo nem
pode acontecer numa sociedade em que os educadores são tratados como resto,
desrespeitados até em sala de aula, até mesmo por pais de alunos. Os
verdadeiros educadores, que hoje são menos do que os necessários, intimidados e
humilhados pelos governos e pela sociedade, estão recolhidos ao silêncio dos
derrotados numa guerra que não é a da educação.
O país precisa da escola com escola, a escola que
educa nos valores da civilidade para a sociedade da civilização. Que compreenda
que a esperança é muito mais do que o querer autoritário de partidos políticos.
Sem esperança, a verdadeira e completa esperança, a que faz de cada cidadão, de
cada jovem, de cada criança agente ativo de transformação da sociedade numa
sociedade justa e feliz, a educação com escola ou sem escola será apenas resto,
o nada que nos sobrou do muito que já tivemos em educação. Já fomos um país
educador. Não o somos mais.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da
Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Política do
Brasil Lúmpen e Místico” (Contexto).
Lua Nova: Revista de Cultura e Política
Print version ISSN 0102-6445
Lua Nova vol.1 no.2 São
Paulo Sept. 1984
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64451984000200002
A
transição e os atores
A palavra transição freqüenta, hoje, a boca dos
principais políticos do governo e da oposição. O seu significado e a forma como
deve ocorrer, no entanto, nem sempre coincidem para os vários atores do nosso
cenário político. Em vista disso, LUA NOVA entrevistou o governador
Tancredo Neves, de Minas Gerais e do PMDB, e o presidente Luis Inácio Lula da
Silva, do PT.
Tancredo Neves foi entrevistado, em Belo Horizonte,
por José Álvaro Moisés, editor de LUA NOVA, e pelo repórter Hamilton
Cardoso. Luis Inácio Lula da Silva foi ouvido, em São Paulo, pelo repórter.
A versão Tancredo
A versão Tancredo
A versão Tancredo
PERGUNTA – Como o senhor vê o processo de transição
do autoritarismo para a democracia no Brasil?
TANCREDO – Bem, registram-se, entre os povos,
diferentes experiências de transição política do autoritarismo à democracia.
Estas experiências, embora semelhantes em muitos aspectos, não são
necessariamente iguais. Um primeiro exemplo é o que ocorreu no Brasil em 1945,
no final do Estado Novo. Os próprios militares viraram-se contra o governo
autoritário do qual eles, antes, faziam parte, e promoveram o golpe de 29 de
outubro, conduzindo, assim, à transição para a democracia por intervenção dos
próprios militares. Outra forma de transição é a planejada, como ocorreu na
Espanha, onde após a morte de Franco, o rei tomou em suas mãos o processo de
transição e, junto com as forças vivas da Nação, planejou o retorno à
democracia, através de acordos amplos celebrados com toda a sociedade, que
culminaram nos vários pactos – notadamente o pacto de Moncloa – e nos acordos
políticos que permitiram a reorganização da sociedade em bases democráticas.
Existem, ainda, processo de transição que ocorrem de forma violenta, como no
caso argentino, onde o povo se mobilizou, diante da derrota militar na guerra
das Malvinas, e com a galvanização das aspirações populares pelas forças de
oposição, os militares foram obrigados a deixar o poder, convocar as eleições
diretas para a presidência da República e devolver, de uma só vez, todos os
direitos da Nação.
Por fim, existe o exemplo brasileiro atual que é uma
experiência inédita de transição. Uma espécie de transição por etapas, onde as
conquistas democráticas vão sendo feitas pouco a pouco, a democratização é
feita gradativamente. Aqui, ocorreu, em primeiro lugar, a eliminação dos atos
de exceção, como o AI-5, seguida da restituição dos poderes do judiciário, como
foi o caso do restabelecimento do habeas corpus. Depois, veio a luta
contra a repressão, o gradual restabelecimento da autonomia sindical, a
liberdade de imprensa, a anistia e as eleições diretas para os governadores de
Estado. Estamos, agora, na fase final, onde o que deve ser conquistado são as
eleições diretas para a presidência da República e a convocação de uma
Assembléia Nacional Constituinte.
MOISÉS – Como o senhor definiria o programa mínimo
para a transição imediata?
TANCREDO – Na ordem institucional, a primeira
decisão a tomar seria, realmente, a convocação de uma Assembléia Nacional
Constituinte e a fixação da data para as eleições diretas. Segundo, dentro do
debate da Constituição, viriam todas as teses controvertidas, a restauração
plena da República que, hoje, não existe; a reformulação e a modernização da
Federação, através de uma reforma tributária que leve a uma mais justa
distribuição de renda nacional; e a questão do parlamentarismo. No plano
econômico, a primeira providência é a renegociação da dívida externa que
compreende diversos aspectos: primeiro, o da contenção do endividamento. Nós
não podemos ficar sujeitos a um sistema de endividamento subordinado às taxas
flutuantes de juros. Só no primeiro trimestre de 1984, nós pagamos um bilhão e
duzentos milhões de dólares, acrescidos à nossa dívida, apenas com a alteração
da taxa de juros, nos Estados Unidos. Não há nação que suporte um sistema que
foge a todas as regras da justiça social e da justiça internacional. Em segundo
lugar, tem o problema da amortização, que não se resolve a não ser com a
moratória de cinco anos, abrangendo juros e capital. E, depois, pra que ter um
dispositivo de amortização compatível com o nosso processo de desenvolvimento
econômico. Nós não podemos manter a nação permanentemente em recessão. Isto
significa reduzir a nação à fome, ao desemprego e à destruição de nosso parque
produtivo, apenas para nos submetermos às exigências dos nossos credores,
externos. Então, temos que estabelecer um sistema de amortização compatível com
a nossa capacidade de amortizar. E essa capacidade de amortização estará sempre
em função da nossa capacidade de exportação. A nação então retomaria o processo
de desenvolvimento econômico e pagaria depois, acrescentando à dívida o que se
deixar de pagar, negociadamente, nesses cinco anos. Seria uma política de
retomada do desenvolvimento econômico para vencer o desemprego. Só dessa
maneira se pode assegurar à Nação um crescimento mínimo de 5 a 6% do Produto
Interno Bruto, porque senão ela estará fatalmente condenada à desagregação. No
plano social eu acho que a política tem que ser mais agressiva ainda. O
monetarismo ortodoxo, que nos impuseram nestes últimos 20 anos, não gerou
nenhuma melhoria nas condições de vida das classes mais injustiçadas. Nós temos
uma dívida social que abrange, inclusive, a mortalidade infantil, que é das
mais altas do mundo; nós temos o problema do menor abandonado que é um desafio,
uma chaga sangrando permanentemente nas costas da sociedade brasileira.
A reforma agrária não pode ser adiada por mais
tempo, porque ela vai resolver, em grande parte, o problema do desemprego, vai
ampliar o mercado interno do Brasil e vai dar estabilidade a essa massa rural
que está sendo expulsa dos campos para empobrecer ainda mais as periferias das
grandes cidades.
É evidente que, em crise, com choque, você não
resolve os problemas. O que a gente tem que fazer é que não haja um conflito.
Você não desloca interesses instalados sem haver realmente um conflito e um
atrito de interesses. Há que haver muita inteligência, com imaginação, mas na
lei e na ordem.
Parece que nós estamos vivendo no século XVIII,
discutindo eleições diretas/indiretas, legitimidade de poder,
representatividade, o voto do analfabeto. São coisas de um ridículo total, não
é? Não há nação civilizada, no mundo, em que isto não esteja definitivamente
resolvido, ninguém admite sequer que qualquer coisa dessa seja levantada. Nós
devíamos estar lutando é pela democracia econômica. O que caracteriza a
democracia econômica? É a participação equitativa de todos, com justiça social,
na renda nacional. É a ascensão da massa a todos os benefícios da civilização:
que haja escola gratuita a todos e em todos os lugares, que haja alimentação e
que ninguém tenha fome e assim por diante. Mas nós estamos alienados destes
problemas, porque existe o problema institucional. Ele tem um grande poder de
absorção. A gente tem até a impressão de que este processo é dirigido para
tirar a atenção do povo destas suas reivindicações no plano econômico e no
plano social.
MOISÉS – O senhor mencionou o pacto de Moncloa, na Espanha,
que levou a um entendimento amplo entre as diversas forças políticas. Na
verdade foram dois ou três pactos que, quando se realizaram, já tinha havido na
Espanha rupturas da estrutura sindical franquista, já tinha havido a
recuperação do direito de greve e até os partidos ilegais tinham recuperado a
sua legalidade. Chega-se, então, ao pacto com um quadro social e político mais
ou menos ordenado com avenidas e vias abertas. Como é que o senhor veria isto?
Atualizar a lei de greve às novas conquistas
TANCREDO – Bem, nossas conquistas sindicais não têm
sido pequenas. Ainda falta muito, os nossos sindicatos ainda precisam de
fortalecimento, mas eles já têm uma presença ativa. Toda vez que um sindicato,
no Brasil, se posiciona em torno de uma reivindicação salarial, ele leva a
melhor. Onde o sindicato é, realmente, uma força que não se impõe é nas
reivindicações políticas. Quando o sindicato sai das reivindicações sindicais e
caminha para as reivindicações políticas, evidentemente, estabelecem-se dentro
do próprio sindicato divisões decorrentes das posições políticas de cada um.
Mas eu acho que a reforma da Consolidação das Leis de Trabalho se impõe. Ela
tem que ser feita com urgência. Outro item de uma reforma social profunda, no
Brasil, é o da lei de greve: ela deve ser atualizada às novas conquistas da
própria massa operária no Brasil.
MOISÉS – O senhor veria isso como pré-condições para
se chegar ao entendimento amplo ou como o seu resultado?
TANCREDO – Eu acho que precisamos disso para
chegarmos aos objetivos, porque senão vai ser muito difícil.
MOISÉS – Governador, nós avançamos através de um
processo a "conta-gotas", como o senhor o define, na base da
supressão dos aspectos mais repressivos do regime, como o AI-5, mas nós ainda,
convivemos com a Lei de Segurança Nacional, com as "salvaguardas" do
Estado, etc. O senhor veria isto como parte da negociação?
TANCREDO – A Lei de Segurança Nacional já não é a
mesma de sua origem, que era uma lei caracterizadamente fascista. Muito embora
abrandada, nestes últimos dez anos, com a eliminação de muitos dos delitos que
figuravam na lei original, ela ainda precisa sofrer transformações. Uma lei de
segurança vale pelo seu espírito; uma coisa é uma legislação elaborada por um
regime ditatorial e autoritário, outra coisa é uma lei de segurança elaborada
num regime democrático. Todas as nações do mundo possuem as suas leis de
segurança, até as nações socialistas. Nós temos uma lei de segurança que ainda
é mais uma lei de segurança do Estado que uma lei de segurança da Nação. Nós
devemos ter uma lei de segurança que defenda o cidadão contra o Estado. Não
tenho dúvida. A Consolidação das Leis de Trabalho, a Lei de Segurança Nacional,
a lei de greve... todas devem estar incluídas na agenda de negociações. Você
não pode aplicar soluções absolutas em política. Política é a arte do relativo.
Você não faz política como quer. Você só faz este tipo de política quando
realiza uma revolução, torna a revolução vitoriosa e, então, consegue todos os
seus objetivos, mas de revolução, nem se cogita no Brasil.
MOISÉS – O senhor vê isso afastado?
TANCREDO – Muito afastado. No Brasil, não há
condições mínimas para isso. Se não tivesse havido um abrandamento nos
instrumentos do regime de 64, nós teríamos chegado a uma convulsão social. A
mobilização pelas diretas demonstrou isso. Essas massas numerosas não vieram às
ruas só pelas diretas. As diretas eram uma idéia-força. O que levou toda essa
multidão às ruas foi, justamente, uma manifestação de inconformismo e
insatisfação, eu diria mesmo, de revolta contra o custo de vida, havia o
protesto contra a corrupção, a violência, o continuismo, contra o retardamento
das soluções dos problemas do povo. Foi um grande movimento por transformações
e mudanças.
MOISÉS – E parar tudo isso, neste momento, não vai
criar uma contradição para as forças de oposição; se elas tiverem de ir à mesa
de negociações, estarão enfraquecidas?
TANCREDO – Não. Porque, nesta luta, levando o
movimento à radicalização, vamos ter um retrocesso. Não pode ser uma solução
emocional e irracional. Veja bem, o divórcio entre o poder e a Nação é muito
grande. Mas o poder é muito forte. É mais forte que a Nação. É aí que nós temos
que ter senso político suficiente para fazer as conquistas sem traumatismos
mutilantes.
HAMILTON – Mas as oposi-ções estarão negociando,
então, em situação de fraqueza...
TANCREDO – Não de fraqueza, mas de carência dos
instrumentos de força. Nós temos instrumentos de apoio moral, de apoio social,
de apoio do povo, mas não temos os instrumentos necessários para impor essa
decisão.
O Congresso deve atender às aspirações populares
HAMILTON – Que instrumentos faltam?
TANCREDO – Nós temos que convencer o Congresso de
que ele deve atender às aspirações populares. Eu tenho para mim que se, amanhã,
nós conseguíssemos tornar vitoriosas as diretas, no Congresso, as Forças
Armadas apoiariam e sustentariam a emenda das diretas. Se, porém, o Congresso
tiver força para decidir contra as diretas, terá também o apoio das
instituições militares, dentro do seu compromisso de defender a Constituição.
HAMILTON – Governador, que cacife a oposição teria
para negociar com o governo numa situação em que a luta está centrada dentro do
Congresso, as mobilizações de rua não têm mais aquele vigor e um setor do
Congresso está sob a influência direta do governo?
TANCREDO – O grande cacife das oposições são,
exatamente, as mobilizações da opinião pública que ela comandou e levou a
efeito. O governo e o seu partido não são tão insensíveis a ponto de continuar
ignorando este grande movimento. Este é o grande cacife que nós temos na mesa
de negociação. Em segundo lugar, vem a consciência que o governo tem de que, se
não chegar a um entendimento, vai caminhar para o confronto que ele não deseja.
Porque ele pode, inclusive, ser soterrado na hora do confronto. Eu acho que
hoje é a autodefesa dos seus interesses que leva, realmente, a uma negociação
mais ampla, procurando tanto quanto possível aproximar-se o mais rapidamente
das aspirações populares. O movimento de mobilização pelas diretas está plenamente
vitorioso. Pode não ser pra já, pode ser para daqui a dois anos e meio, pode
ser para daqui a quatro anos, mas já é uma vitória. E se não houvesse a
mobilização popular, nós só iríamos ter eleições diretas – se tivéssemos –
depois de seis anos da posse do sucessor de Figueiredo. Agora, o movimento foi
bonito...
MOISÉS – E a hipótese do mandato-tampão?
TANCREDO – Quer saber de uma coisa? O
mandato-tampão, com o voto direto, até que eu apoiaria, porque ele é, ao menos,
uma solução que atenderia à reivindicação básica e fundamental do povo. Há quem
defenda o mandato-tampão através do Colégio Eleitoral para abrir um espaço de
transição, mas eu acho que ele deveria se fazer com disputa, com voto direto.
Nós iríamos à praça pública pleitear democraticamente a conquista do poder. O
mandato-tampão, com voto direto, teria a grande vantagem de aproximar ainda
mais o povo das diretas. Se você pensar melhor, ninguém apóia mandato curto,
por razões doutrinárias: do ponto de vista da conveniência administrativa, em dois
anos e meio, o que se pode fazer?
Mas, se esse mandato vier realmente, para atender a
uma conjuntura, e o novo presidente for apenas para preparar as condições para
o futuro presidente, aí é diferente. Ele vai, por exemplo, promover a
Constituinte, reformular a política econômico-financeira, vai adotar uma
política de impacto no campo social, gerar empregos e aliviar a situação de
carência em que vive a grande maioria da população mais injustiçada. Se ele
buscar, realmente, tudo isso e conduzir à convocação de uma Constituinte,
quando da eleição do próximo Congresso, em 86, até que se explica. Mas, só por
esse aspecto – que eu chamaria de psicologia social e política – porque
permitiria aproximar mais as diretas do povo.
MOISÉS – Agora, qual é a sua convicção pessoal mais
profunda? Qual será o próximo passo? Através da emenda, vai se chegar a um
entendimento?
TANCREDO – É o que eu acredito. Quer dizer: é a
fatalidade, é a inexorabilidade da evolução do processo político.
MOISÉS – O senhor mencionava, no início, que a tese
de conciliação não pode ser vista do ponto de vista regressivo, ou seja, apenas
uma conciliação das elites contra o povo. Como é que se pode imaginar a
hipótese de entendimento, conciliação, que abrigasse a todos os segmentos da
sociedade?
TANCREDO – Eu acho a conciliação muito difícil, ela
não é fácil. Os partidos se extremaram e os candidatos do PDS não se mostram
dispostos a qualquer tipo de renúncia. Aliás, a conciliação para ser efetiva
não poderá ser um entendimento entre cúpulas partidárias. Esta seria uma
conciliação elitista, uma marginalização do povo e até contra os seus
interesses. A conciliação teria que se fazer em torno de um programa mínimo de
ação política, em que se contemplassem aquelas reivindicações decorrentes das
mais sentidas exigências da nossa gente. Em torno desse programa se
aglutinariam todos os segmentos da sociedade. O entendimento se faria de
maneira estrutural, isto é, de forma vertical, abrangendo nos seus objetivos os
interesses fundamentais das diversas categorias sociais, dando-se ênfase à
situação aflitiva e desesperadora das camadas mais sofridas do nosso povo.
Lua Nova: Revista de Cultura e Política
Print version ISSN 0102-6445
Lua Nova vol.1 no.2 São
Paulo Sept. 1984
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64451984000200003
A
versão Lula
PERGUNTA – Como você vê a transição do autoritarismo
para a democracia no Brasil?
LULA – Existem duas formas de se fazer a transição
do regime autoritário para o regime democrático. A primeira, como todos
queremos, no Brasil, é disputando com o regime; ou seja, ganhando do regime
pelo voto secreto e, a partir daí, fazendo as mudanças necessárias para
democratizar o país. Eu acho que esta é a forma que pode levar a um regime
democrático sólido e efi-caz, na medida em que o povo participa da sua
construção.
A outra forma de transição implica a
responsabilidade de as oposi-ções arcarem com o ônus político de aceitar as
imposições do regime autoritário que, ao invés de deixar o poder de vez, quer
sair paulatinamente. Quer dizer: aos poucos vai-se abrindo o espaço para as
oposi-ções assumirem. Mas, quando o regime autoritário chega a isso, é porque a
sua situação econômica já não permite mais a sua continuidade, pois
comprometido com o sistema econômico internacional, o regime não pode mudar o
quadro. Então, ele tenta abrir as portas para que outros façam as mudanças que
ele não pode fazer. Me parece que isto é um pouco o que acontece no Brasil.
Eu acho que esta forma de transição não é eficaz. Na
minha opinião ela não é prudente, neste momento, porque o regime autoritário,
no Brasil, é tão decadente, tão comprometido com o processo de corrupção e de
entrega do país aos interesses multinacionais que ninguém de oposição deveria
assumir, mesmo um governo de transição, sem colocar toda esta situação de modo
muito claro para a população.
A transição é muito mais eficaz quando o povo
participa das decisões. Esta é a proposta do Partido dos Trabalhadores. O que a
gente quer é que o povo brasileiro saiba, detalhe por detalhe, cada decisão
tomada pela oposição e pelas pessoas que podem chegar ao governo. Isso para
permitir que, amanhã, o povo possa cobrar o governo.
Não se pode falar, no Brasil, de um pacto como o de
Moncloa, ocorrido na transição espanhola. Primeiro porque a tradição dos
partidos políticos na Espanha é secular, eles eram muito fortes; segundo porque
existia, na Espanha, um movimento sindical que, mesmo na ilegalidade – com as
Comisiones Obreras e as outras organizações –, estava sempre mobilizado e
criando grandes embaraços para o regime franquista. Além disso, na Espanha o
rei bancou o pacto e, aqui no Brasil, além de não termos rei, o regime não tem
autoridade moral e política para bancar algo dessa natureza. Então, não se pode
comparar a experiência espanhola com a do Brasil. A gente não pode, pura e
simplesmente, transportar a experiência histórica de um país como a Espanha
para cá, para justificar um acordo com o governo.
Nós não podemos confundir acordo com transição. Eu
acho que acordo não leva, necessariamente, ao governo de transição, mas sim a
um governo imobilista, a um governo muito mais comprometido com o poder do que
com o povo.
Os dez pontos do Partido dos Trabalhadores
HAMILTON – Você falou de duas hipóteses de
transição: a primeira através de eleições diretas, a segunda através de
concessões. A hipótese das diretas o regime descarta, enquanto a de concessões,
quem descarta é você. Qual o caminho que resta, então?
LULA – Em primeiro lugar, é preciso salientar que o
governo não está fazendo nenhuma concessão às oposições. Na verdade, são alguns
setores da oposição que fazem concessões ao governo. Aí a coisa muda de figura.
Uma coisa é quando você tem uma posição sólida, enraizada no movimento popular
e com forte poder de pressão, o que leva o governo a vislumbrar a possibilidade
de perder o poder e, então chama a oposição para negociar, senão a entrega
total, ao menos a entrega parcial do poder. Hoje, no Brasil, acontece
exatamente o inverso: na medida em que o povo foi à rua e deu um aval à
oposição, esta, ao invés de continuar a mobilização popular para conseguir mais
força, fraqueja e alguns dos seus setores começam a fazer concessões ao
governo: concessão no discurso, concessão nas propostas... Isso reverte o
quadro. As eleições diretas podem ser aprovadas no Congresso Nacional se se
criar um clima favorável para as oposições conquistarem as diretas. Este clima
não está sendo criado porque há setores que estão tentando desmobilizar a
população. Eu acredito, ainda, que nós podemos democratizar a legislação partidária,
legalizar os partidos clandestinos, mudar a estrutura sindical e, depois,
convocar as eleições diretas com todos os partidos concorrendo para chegar a um
governo de transição: isso se faz colocando o povo na rua, organizando-o por
bairro, por local de trabalho, e pressionando o governo.
O diretório nacional do PT definiu, recentemente,
dez pontos que acreditamos que sejam essenciais para solucionar a crise no
Brasil e é em torno deles que tentaremos reunir o mais amplo arco de forças
sociais, em busca da democratização do país. Os pontos são os seguintes: 1.
Revogação da Lei de Segurança Nacional e todas as leis repressivas, bem como os
dispositivos constitucionais sobre medidas de emergência e o "Estado de
Emergência", além do desmantelamento do aparato repressivo; 2. Rompimento
imediato com o Fundo Monetário Internacional e a imediata suspensão do
pagamento da dívida externa, seguida de uma investigação de caso por caso; 3.
Imediato reajuste salarial para todos os trabalhadores, com base na inflação
dos últimos seis meses, e a adoção, daí por diante, da escala móvel de
salários; 4. Criação do salário desemprego e a adoção de medidas econômicas
para gerar empregos, em grande escala, para as diversas regiões do país; 5.
Reforma agrária sob a direção e controle dos trabalhadores e que garanta terra
para quem nela trabalha; 6. Restabelecimento da liberdade e autonomia
sindicais, com o reconhecimento efetivo do direito de greve, e o desatrelamento
da estrutura sindical do Estado; 7. Reformulação, com a participação dos
trabalhadores, das leis sobre trabalho, salário, previdência social e
aposentadoria; 8. Atendimento de emergência às necessidades básicas das
populações mais carentes em termos de alimentação, saúde, habitação, educação,
transporte, vestuário, recreação, lazer e cultura, com fundos provenientes dos
lucros das multinacionais, grandes proprietários rurais e sistema bancário e
financeiro; 9. A mais ampla liberdade de organização partidária, inclusive para
as correntes hoje consideradas ilegais, o restabelecimento das eleições diretas
para prefeitos de todos os municípios, inclusive aqueles considerados áreas de
segurança nacional, a renovação da lei Falcão, da lei das inelegibilidades, dos
casuísmos, da legislação partidária e eleitoral e de quaisquer restrições à
livre propaganda e ao direito do voto que deve ser estendido aos analfabetos,
soldados e cabos; 10. Solidariedade com os povos de todo o mundo que lutam
contra o imperialismo e a opressão de governos antidemocráticos; o
restabelecimento das relações diplomáticas, culturais e comerciais com Cuba e o
reconhecimento da Frente Farabundo Marti, como legítima representante do povo
salvadorenho. Eu acredito que um governo que proponha esses compromissos vai
possibilitar que estas reformas de base sejam assumidas por toda a sociedade
que, com total liberdade de organização, criará condições para que todas as
forças políticas participem efetivamente das decisões deste país.
Ganhar tempo e limpar as gavetas
HAMILTON – Esse governo poderia ser resultado da
negociação?
LULA – Não, teria que ser escolhido através de
eleições diretas.
HAMILTON – Sim, mas e se o Congresso não aprovar as
diretas e, num processo de negociação entre setores das oposições e o governo,
você foi convidado a participar de um governo de transição...
LULA – Veja bem: eu não acredito que o governo
negocie o poder. A transição, para o governo, é mais uma forma de ganhar tempo
para uma limpeza de gavetas destinada a esconder o que existe de corrupção e
arbítrio. Por outro lado, um governo que assuma sem as eleições diretas para
presidente da República vai assumir subordinado ao que está aí. A avaliação do
PT é a de que todo e qualquer acordo feito pelas elites é apenas a confirmação
daquilo que é a história do Brasil: toda vez que o povo brasileiro ou as
classes trabalhadoras começam a se organizar e a adquirir consciência, as
elites se unem para evitar que o povo continue a sua marcha, para tentar
manipulá-lo, usá-lo como marionete para que não conquiste os seus objetivos. Eu
tenho afirmado que se o Partido dos Trabalhadores quiser contribuir para a
formação política deste povo e a formação histórica da Nação, não pode
participar de acordos mesmo porque, reafirmo, a gente não vai conseguir, na
situação atual, um acordo decente com o regime. Questões básicas como as
mencionadas, reforma agrária, autonomia sindical, salário mínimo condizente com
as necessidades reais do povo, política de pleno emprego e todas essas coisas
não encontrarão, nas elites, quem esteja disposto a ceder para a classe
trabalhadora.
Depois, eu acho também que é impossível o
entendimento para se chegar a um acordo, porque não conheço na história do
mundo ninguém que entregou o poder através de um acordo. Depois, porque se as
oposições estivessem fortes e organizadas não fariam um acordo, mas tomariam o
poder. Por estas duas razões, eu não acredito em acordos: de um lado, o governo
não quer, e de outro, as oposições não têm, ainda, suficiente força acumulada
para fazer o governo ceder diante daquilo que queremos.
HAMILTON – Há quem diga que essa posição é de
intransigência e gera o impasse...
LULA – A imagem do impasse que está sendo criada
pelos meios, de comunicação precisa ser desfeita. Na verdade, o impasse já
existe para a classe trabalhadora. O desemprego é uma forma de impasse; quando
se consegue emprego é o impasse do salário; com o salário vem o impasse da
assistência médica, se se consegue a assistência médica é o impasse da saúde e
quando consegue a saúde é mandado embora... Daí eu pergunto: o que ganhamos com
um acordo com o regime? O que interessa agora é a eleição direta, porque ela,
sim, abre a perspectiva de mudar o regime... As oposições têm que pagar para
ver e não fazer oposição de brincadeira. Tem que dizer ao governo que não vai
ao Colégio Eleitoral porque sabe que a divisão do PDS é estratégica, e mostrar
ao regime que é ele quem deve arcar com a escolha de um presidente da República
sem nenhum respaldo popular. Se as oposições ficarem com medo, imaginando que
haverá retrocesso, a coisa vai ficar feia e o governo vai tirar proveito dessa
fragilidade.
As oposições não podem ficar a vida inteira
discutindo a possibilidade ou não de um impasse, mesmo porque o impasse faz
parte da vida política e é através dele que se consegue colocar a casa em
ordem. Existe, em política, um negócio chamado medição de forças: se o regime
tem mais gente no Congresso, as oposições têm muito mais gente nas ruas...
Organizando, retomar o anseio de participação
HAMILTON – Então, qual é o caminho que você aponta?
LULA – A gente tem que retomar o anseio de
participação popular que havia até o dia 25 de abril. Temos que sair da fase
das grandes manifestações para organizar a população, porque não basta, pura e
simplesmente, o povo ir às ruas e gritar "diretas-já"; este povo
precisa se auto-afirmar, em termos organizativos, nos seus bairros e nos seus
locais de trabalho. É preciso inventar mil formas de manifestações, desde os
"panelaços", passeatas, minicomícios, mini-assem-bléias, planfetagens
e murais, até chegar às condições para, junto com o movimento sindical, a CUT e
a CONCLAT, assumir a greve geral, não como um empecilho, mas como uma arma
política da classe trabalhadora para a conquista de algumas das suas principais
reivindicações.
O movimento pelas diretas não pode mais jogar o seu
peso só sobre o Congresso Nacional que não aprovou as diretas e deixou o povo
desanimado e frustrado. O Congresso precisa ser legitimado, mas quando todos
tiverem total liberdade de organização e todas as correntes políticas da sociedade
puderem disputar em igualdade de condições. Ou seja, cada líder político
precisa desenvolver a política do feijão com arroz, cada liderança responsável
por um sindicato, uma comunidade, um partido político tem que recomeçar as
reuniões por bairro onde mora, por local de trabalho, para discutir com as
pessoas as razões por que queremos as eleições diretas-já: queremos mudar o
regime e as estruturas políticas deste país e não apenas eleger o próximo
presidente da República.
Terra de Sonhos
Tocando em frente
Cálix bento
Referências
"transição", in Dicionário Priberam da
Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/transi%C3%A7%C3%A3o [consultado
em 06-01-2018].
"mutilante", in Dicionário Priberam da
Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/mutilante [consultado
em 06-01-2018].
http://gilvanmelo.blogspot.com.br/2018/01/jose-de-souza-martins-escola-com.html?m=1
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451984000200002
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451984000200003
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