terça-feira, 28 de novembro de 2017

Morada de Gatunos

Mormente

"O pensamento já não é a consciência social da práxis, do pensar para transformar, para emancipar, para estar junto com os outros. O pensamento pobre sobre ricos e pobres em vez do pensamento rico sobre pobres e ricos, sobre as contradições que nos dividem e nos afundam." José de Souza Martins

De antigamente a modernamente
De então a recentemente
De anteriormente a presentemente
De antes a hoje
De dantes a hodiernamente
De antanho a ultimamente

Atualmente, contemporaneamente.


Vista do Morro da Favella (Morro da Providência)

“Na Favella – Trecho inédito do Rio – A morada dos gatunos e desordeiros”, publicada em maio de 1903 na Gazeta de Notícias:
Neste morro da Providência moram os mais terríveis malandros do mundo, com mulheres tremendas e assassinatos semanais.
─ Isso é literário demais!
─ Literário? Olha, se gostas dos romances do visconde Ponson ou do visconde Montepio, tens campo vasto para examinar de perto uma sociedade como a inventada por eles.
─ Muitas mortes?
─ Semanalmente.
─ Pois então subo.
Subimos o morro por um íngreme caminho bordado de águas empoçadas por onde vão negras maltrapilhas, moleques desnudos, tipos suspeitos de lenço ao pescoço. É impossível imaginar que ali, no centro da cidade, habite gente tão estranha e com uma vida tão própria. A proporção que vamos caminhando vamos admirando as habitações daqueles estranhos moradores, desde o sopé da montanha as casas são todas feitas de bambu entrelaçado com barro tendo por teto pedaços de folhas-de-flandres. (NA FAVELLA, 1903)


sexta-feira, 24 de novembro de 2017
José de Souza Martins: Pensamento pobre
- Valor Econômico / Eu &Fim de Semana

Em comparação com minha época de estudante, as pessoas de hoje são muito mais informadas do que eram as daquele tempo. Mas não são menos ignorantes. Sabem muito, mas imprópria e provisoriamente. Sabedoria que chega ao interessado com uma clicada no celular ou no computador para ser esquecida em 20 minutos. Ficam resíduos que vão constituir a nova cultura popular dos cheios de certeza sobre todos os assuntos. Mas, uma coisa é ficar sabendo, outra, muito diferente, é saber. Por isso, somos hoje mais enganados do que éramos há meio século.

No geral, sabem acertar no acaso dos testes de múltipla escolha, mas não sabem explicar a construção da pergunta nem a razão da resposta. Quem, como eu, é professor universitário, sabe que há diferenças de competência entre os alunos que ingressaram nas grandes universidades em 1960 e os que estão nelas ingressando em 2017. No peneiramento dos talentos, que ocorre ao longo do curso universitário, apenas uma parte dos ingressantes tem as características próprias do que Karl Mannheim define como intelectual. Felizmente, ainda são muitos que as têm porque é muito maior do que no passado o número dos que chegam à universidade, embora sobrem proporcionalmente em menor número.

O maior e mais fácil acesso a fontes de informação difundiu uma cultura padronizada, privada de componentes críticos e de raciocínio próprio de gente que até sabe responder as perguntas, mas que não sabe desconstruí-las, decifrar-lhes as conexões de sentido, entender-lhes a lógica interna. Perguntas são apenas causas de respostas, já não propriamente desafios de interpretação. As hierarquias, no âmbito do conhecimento, foram substituídas pelas equivalências e seus signos. Tudo parece equivalente, o que enche esses novos sábios do cotidiano de certezas definitivas e absolutas. Os saberes são medidos pelo mesmo metro, por mais diferentes que sejam entre si.

Na era do almoço por quilo não há a menor diferença entre filé-mignon e repolho. Não há, também, a menor diferença entre o saber de um engenheiro que teve formação científica e um engenheiro que teve apenas formação técnica. Não há diferença entre um médico que ausculta, apalpa e diagnostica e um médico capaz de fazer um diagnóstico cientificamente explicativo, com base em pesquisa científica. Não há diferença entre o economista capaz de fazer cortes e ajustes na economia que afeta a todos e o economista capaz de propor políticas econômicas baseadas em diagnósticos fundamentados, mas também em avaliações científicas das consequências sociais das medidas que propõe. Não há diferença entre o economista que faz estudos e análises com base na premissa do primado da produtividade e o que é capaz de pensar a economia com base na função da produtividade no bem-estar social.

Embora haja muitas exceções, no geral as pessoas aprendem a repetir, mas não aprendem a pensar. Tenho notado, nas reações ao que escrevo e ao que colegas e conhecidos escrevem ou ao que dizemos em palestras e conferências, especialmente para pessoas de educação média, em diferentes lugares do Brasil, questionamentos chapados, de matriz ideológica, em alguns casos informados por orientações padronizadas de igrejas, em outros por orientações padronizadas de partidos, grupos de interesse partidário ou grupos ideológicos.

Questionamentos baseados em simplificações padronizadoras. Todo negro descende de escravos, o que não é verdade. Todo pardo é negro, ainda que negro de mestiçagem, o que é menos verdade ainda. Todo operário é pobre, o que não corresponde ao fato de que um número extenso de operários tem salários maiores do que muita gente da classe média.

A consciência social crítica dissolveu-se na pseudocrítica da recusa, da intolerância, do ódio. Uma cultura da vingança se disseminou. O pressuposto da resistência está em toda parte. Tudo se tornou, supostamente, resistência. A resistência como sinônimo de ser contra e não como sinônimo de ser crítico, isto é, de ser capaz de desvendar os aspectos ocultos e invisíveis de todos os campos sobre os quais pode incidir a pesquisa científica.

Nas ciências humanas isso é particularmente complicado. A pessoa comum não tem como compreender na superfície do visível causas e fatores profundos e ocultos dos acontecimentos sociais. Luta contra porque acha que sabe. Opõe-se ao conhecimento científico porque este esvazia criticamente o conhecimento ideológico.

O pensamento já não é a consciência social da práxis, do pensar para transformar, para emancipar, para estar junto com os outros. O pensamento pobre sobre ricos e pobres em vez do pensamento rico sobre pobres e ricos, sobre as contradições que nos dividem e nos afundam.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano” (Contexto).
http://gilvanmelo.blogspot.com.br/2017/11/jose-de-souza-martins-pensamento-pobre.html



 
A morada dos gatunos e desordeiros João do Rio
 – Se tens coragem, vai lá acima. Eu fico. Muito cuidadinho com a pele. Adeus! Essas palavras prudentes nos dizia um prudente cavalheiro, vendo passar as locomotivas, bem no sopé do Morro da Providência. A povoação ali é toda outra, uma porção de trabalhadores, de vagabundos por entre nuvens de poeira, cosendo-se às casas sórdidas e mal alinhadas. Faz um sol forte, um sol que parece mais quente derramado assim naquela poeira, naquelas pedras, naquela gente.
 – Mas vem cá, homem, escuta. É impossível ir lá acima sem uma informação.
 – Ora, os jornais têm dado, a polícia sabe. Neste Morro da Providência moram os mais terríveis malandros do mundo, com mulheres tremendas e assassinatos semanais.
 – Isso é literário demais!
 – Literário? Olha, só gostas dos romances do visconde Ponson ou do visconde Montepin, tens campo vasto para examinar de perto uma sociedade como a inventada por eles.
 – Muitas mortes?
 – Semanalmente.
 – Pois então subo.
 – Bom proveito.
Subimos o morro, por um íngreme caminho bordado de águas empoçadas, por onde vão negras maltrapilhas, moleques desnudos, tipos suspeitos, de lenço no pescoço. É impossível imaginar que ali, no centro da cidade, habite gente tão estranha e com uma vida tão própria.
À proporção que caminhamos, vamos admirando as habitações daqueles estranhos moradores. Desde o sopé da montanha as casas são todas feitas de bambu entrelaçado com barro, tendo por teto pedaços de folha de flandres seguros com pedras, são baiucas, são pocilgas, são indescritíveis. A maior parte não tem metro e meio de altura e consta apenas de quatro estacas formando um quadrilátero com o chão por soalho. Aí se acumulam famílias numerosas, crianças nuas, com o ventre enorme, mulheres amarelas e duvidosas quase despidas. As febres grassam em todo o morro. Não são só essas espécies de casas, lôbregas, sem luz, causa das moléstias. Ladeando o caminho grandes poças de águas estagnadas exalam um terrível mau cheiro. Ouvem-se a todo momento gritos, pragas, aparecem caras coléricas às portas, cachorros uivam.


De vez em quando, as baiucas vergonhosas desaparecem e o caminho é como uma garganta, entre as rochas. Encontramos um tipo alto, a carregar água, que se põe a tremer quando nos vê.
 – Que faz você?
 – Estou carregando água pra casa, sim senhor.
 – Casa construída por você mesmo?
 – Não, senhor, pago aluguel, tenho senhorio.
 – Senhorio por isso! no centro das cidades baiucas destas!
 – O morro divide-se em quatro partes. Cada uma tem o seu administrador. O lugar em que eu moro é sossegado. Só há rolo em família, os homens que batem nas mulheres.
 – E os capoeiras?
Ele olha para os lados receoso.
 – O senhor vá por ali.
Subimos mais, até encontrar um dos administradores dessa interessante vida, e ele, então, prestativo, leva-nos a todos os lados do morro informando-nos.
O morro da Providência sempre foi um lugar célebre de capoeiragem e assassinatos. Outrora, no lugar onde hoje existe o Cruzeiro, mandado fazer pela Santa Casa, bem no pico da montanha, é que se davam as lições de capoeiragem. Chamavam o china seco e a polícia monárquica nunca pôde acabar com o centro de horror.
Depois da Guerra de Canudos, os mais ousados facínoras voltaram a habitar o píncaro do morro denominado Favela, porque no reduto não há polícia que não seja derrotada.
Há no sítio entre as pardas amasiadas, as negras velhas parteiras e curandeiras, duas mulheres da vida virada. Essas criaturas são a causa dos maiores conflitos do morro. Aos domingos sobem a montanha praças de linha, fuzileiros navais, e é certo o rolo. Quem nos conta isso tem a cabeça partida em dous lugares. O crime entre esses criminosos neles apareceu com as mulheres. As pândegas começam com violão e acabam com a navalha.
 – Mas a polícia, que faz a polícia?
A polícia resolveu um interessante meio de acabar com tais cenas: fazer os facínoras "prestar serviços ao delegado", como dizem. Essa ingênua ideia deu em resultado serem aproveitados os valentões da pior espécie, que se tornaram terríveis e são agora os diretores dos conflitos. Falamos nesta ocasião com quatro, o Estêvão, com a cara cortada de gilvazes, o Pedro, o Septe, o João Paraguay.
Todos estão arrogantes, falam malfado às pessoas, espalhando as mãos, com um desbocado falar.
Prestam serviços ao delegado!
São célebres as mortes no beco do Melão, e lá em cima no china seco. Quando alguma esforçada autoridade manda dar um cerco, precipitam-se todos na mata e, como diz um da tropa, começa o tiro. Essas criaturas, entretanto, julgam-se superiores porque têm casa. Todos a que falamos respondem, apontando as fétidas baiucas.
 – Temos a nossa casa!
Descemos, já informados dessa infâmia em pleno centro da cidade, dessa grave lesão aos cofres e às leis da municipalidade, na construção dos horríveis casebres, quando o guia nos pergunta.
 – Quer ir à farsa?
Esse lugar, para o qual se desce por escarpas terríveis, é uma gruta que toma um grande ângulo do morro, e dá frente para a pedreira.
Aí vivem gatunos, assassinos, perseguidos pela polícia, vagabundos perigosos, que atracam à noite os trabalhadores e sustentam-se de aves roubadas, de burros e cabras que apanham a jeito.
 – V. Sa. dá licença, mas não é bom ir lá sem gente.
 – Por quê?
 – Porque recebem a tiro.
Deixamos o informante e descemos.
A gruta é profundíssima e escura. Quando lhe chegamos à boca, um grito soa e reboa em prolongado eco.
 – Olá! Que quer você? E salta um homem nu da cintura para cima, estrábico.  Não há nada mais fácil do que a mentira calma para sustar a raiva desses impulsivos.
Quando o homem chega junto a nós, perguntamos muito tranquilos pelo primeiro nome do assassino que nos vem à cabeça.
 – Não está! É servicinho?
 –  É.
 – Às ordens de V. Sa.
– Vocês estão aqui bem? O tremendo homem abre a dentuça num riso satisfeito.
 – É o que há!
Perguntamos se há muita gente na gruta. Àquela hora só ele e mais um pungista, com medo da Entre-Rios. De noite há sempre mais de vinte.
 – E vocês passam aqui dias?
 – Até meses. Já aqui deu à luz uma mulher e, quando se foi, a filha tinha meio ano!
E põe-se a falar, a contar falcatruas, a evidenciar sua destreza, como um burrantim que quer ser aceito. Fartos já dessa infâmia, perguntamos-lhe para concluir:
 – Como se chama
 – José Escapado.
 – Escapado?
 – Ah! isso é cá na nossa língua. Escapado porque nunca foi preso...
É ele ainda quem nos acompanha à volta, quem a troco de qualquer cousa nos ergue para trepar o atalho. 
Nós saímos da Favela perfeitamente assombrados. As cenas que secamente narramos são a expressão da verdade e relembram as mais furibundas páginas do rodapé-romance.
É possível que ali, à boca da Rua da América, no centro da cidade, as casas sejam de barro e folha de flandres, construídas por proprietários que delas retiram grossas rendas sem o mínimo escrúpulo? Será crível que, a dous passos da Rua do Ouvidor, haja uma Favela, reduto inexpugnável de desordeiros conhecidos e de gatunos temíveis?
Pois há, e, o que é mais, com alguns dos mais valentes prestando serviços à polícia.
Cá embaixo encontramos o amigo prudente.
 – Vivo?
 – Inteirinho.
 – Foste feliz, homem. Para compensar a graça celeste conta esse passeio no teu jornal.


 – Vocês estão aqui bem?
O tremendo homem abre a dentuça num riso satisfeito.
 – É o que há!
Perguntamos se há muita gente na gruta. Àquela hora só ele e mais um pungista, com medo da Entre-Rios. De noite há sempre mais de vinte.
 – E vocês passam aqui dias?
 – Até meses. Já aqui deu à luz uma mulher e, quando se foi, a filha tinha meio ano!
E põe-se a falar, a contar falcatruas, a evidenciar sua destreza, como um burrantim que quer ser aceito. Fartos já dessa infâmia, perguntamos-lhe para concluir:
 – Como se chama
 – José Escapado.
 – Escapado?
 – Ah! isso é cá na nossa língua. Escapado porque nunca foi preso...
É ele ainda quem nos acompanha à volta, quem a troco de qualquer cousa nos ergue para trepar o atalho. 
Nós saímos da Favela perfeitamente assombrados. As cenas que secamente narramos são a expressão da verdade e relembram as mais furibundas páginas do rodapé-romance.
É possível que ali, à boca da Rua da América, no centro da cidade, as casas sejam de barro e folha de flandres, construídas por proprietários que delas retiram grossas rendas sem o mínimo escrúpulo? Será crível que, a dous passos da Rua do Ouvidor, haja uma Favela, reduto inexpugnável de desordeiros conhecidos e de gatunos temíveis?
Pois há, e, o que é mais, com alguns dos mais valentes prestando serviços à polícia.
Cá embaixo encontramos o amigo prudente.
 – Vivo?
 – Inteirinho.
 – Foste feliz, homem. Para compensar a graça celeste conta esse passeio no teu jornal.
Terá o público a pálida notícia desses assombros, o ilustre Prefeito naturalmente providenciará para mandar demolir essas vergonhas de baiucas, causa de mortes e de vergonhas nossas, e é bem possível que, falando um diário de tantos gatunos e de tantos capoeiras, fique despeitado o delegado com a coragem, e a polícia tome providências...





Referências

https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/originals/6c/1d/cd/6c1dcd73d2ce21f6473eca9045f9608c.jpg
file:///D:/Usu%C3%A1rio/Pictures/26910-115127-1-PB.pdf
http://gilvanmelo.blogspot.com.br/2017/11/jose-de-souza-martins-pensamento-pobre.html

https://pt.scribd.com/document/357621615/A-Morada-Dos-Gatunos-e-Desordeiros

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