terça-feira, 6 de agosto de 2019

A alma e o corpo



'Ouçam bem, todos!'


"(...) O rádio transmitia um programa sobre a emigração tcheca. Era uma montagem de conversas particulares ouvidas clandestinamente e gravadas por um espião que se infiltrara entre os emigrantes para em seguida entrar novamente no país com grande estardalhaço. Eram conversas insignificantes entrecortadas vez por outra de palavras cruas sobre o regime de ocupação, mas também de frases em que os emigrantes se tratavam mutuamente de cretinos e impostores. O programa insistia sobretudo no seguinte: era necessário provar que essas pessoas não apenas falam mal da União Soviética (o que não indignava ninguém na Boêmia), mas se caluniam mutuamente, não hesitando em se tratar dos piores nomes. É curioso: dizemos palavrões desde a manhã até a noite, mas se ouvimos no rádio uma pessoa conhecida e respeitada pontuar suas frases com "essa gente é um pé no saco", ficamos um pouco decepcionados.
"Começou com Prochazka!", disse Tomas sem parar de escutar.
Jan Prochazka era um romancista tcheco de quarenta anos, forte como um touro, que, bem antes de 1968, começara a criticar em altos brados a situação do país. Era um dos homens mais populares da Primavera de Praga, essa vertiginosa liberalização do comunismo que terminou com a invasão russa. Pouco depois da invasão, toda a imprensa passou a persegui-lo, mas, quanto mais acuado ele era, mais as pessoas o amavam. O rádio (estávamos em 1970) começara, portanto a transmitir em capítulos conversas particulares que Prochazka tivera com um professor universitário dois anos antes (portanto, na primavera de 1968). Nenhum dos dois jamais suspeitara que havia um gravador escondido no apartamento do professor e que seus menores gestos eram espioanados fazia muito tempo! Prochazka sempre divertia os amigos com suas hipérboles e exageros. E eis que suas incongruências podiam ser ouvidas numa série de programas radiofônicos! A polícia secreta, que fizera a montagem do programa, tomara o cuidado de enfatizar um trecho em que o romancista zombava dos amigos, de Dubcek, por exemplo. Embora as pessoas nunca percam a ocasião de falar mal dos amigos, curiosamente ficaram mais indignadas com o amado Prochazka do que com a odiada polícia secreta!
Tomas desligou o rádio e disse: "Existe polícia secreta em todos os países do mundo. Mas só a nossa é capaz de transmitir suas gravações pelo rádio! É espantoso!".
"Nem tanto", disse Tereza. "Quando eu tinha catorze anos, escrevia um diário. Temendo que alguém o lesse, escondi-o no celeiro. Mamãe conseguiu achá-lo. Um dia, no almoço, quando tomávamos a sopa, tirou-o do bolso e disse: 'Ouçam bem, todos!', e começou a lê-lo em voz alta, torcendo de rir a cada frase. Toda a família se dobrava tanto de rir que até se esquecia de comer." (...)"
Fonte: A insustentável leveza do ser / Milan Kundera; tradução Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca 1a. ed. - São Paulo: Companhia de Letras, 2017.

Nenhum comentário:

Postar um comentário