domingo, 19 de maio de 2019

Pesadelo kafkiano


Poder & Cláusulas Pétreas

... de direitos e garantias constitucionais ...


A nova equipe no Planalto revela falta de projeto nacional e uma escassa familiaridade com os processos do poder. Acredita que a força da ideologia – alardeada pela direita agora no poder – basta para garantir sua solidez no governo? Ou ele se desgasta aí pela frente?

“Desgasta-se e se enfraquece. É um capitão cercado de generais (ainda bem) e por uma prole turbulenta, com visão estreita do mundo, sem plano geral de governo, com algumas propostas que podem ser desastrosas para o País, como as que se referem à política externa, à educação, ao meio ambiente, aos direitos humanos. Ele parece esquecer-se de que boa parte dos votos que o elegeram não foi a seu favor, mas contra o partido de seu adversário. Com pouco tempo na Presidência, já viu o apoio a seu governo cair a níveis mais baixos que os de seus antecessores. Seus dois ministros mais respeitados, o da Fazenda e o da Justiça, veem-se com frequência desautorizados e podem desembarcar do governo”

*José Murilo de Carvalho, cientista político da UFRJ, membro da Academia Brasileira de Letras, com mais de 20 livros publicados. Entrevista ao jornal Estado de S. Paulo, 13/5/2019


Disponível em: http://gilvanmelo.blogspot.com/2019/05/opiniao-do-dia-jose-murilo-de-carvalho_17.html?m=1
Acesso em: 19.05.2019


Historiador vê o Brasil ‘se distanciando de ser um país viável’


JOSÉ MURILO DE CARVALHO. FOTO: TASSO MARCELO/ESTADÃO

O Estado de S.Paulo, 13/05/2019

Para José Murilo de Carvalho, riscos de fragmentação
política são reais e Bolsonaro pode ir “pelo mesmo
caminho” dos governos breves de Jânio e Collor.
.
O desafio central da democracia brasileira, hoje, é “incorporar à sociedade e ao mercado as massas incluídas na política via governos republicanos”. E essa é uma tarefa urgente porque, até aqui , o sistema “não tem sido capaz de absorver a invasão de povo que se deu após a década de 1930”.
É com esse olhar panorâmico de historiador que José Murilo de Carvalho faz suas contas sobre os 100 dias de governo Bolsonaro. O País, diz ele, tem um presidente “com precário suporte partidário, visão estreita do mundo e um governo errático”. As incertezas de hoje lhe trazem à memória os curtos períodos dos presidentes Jânio Quadros (janeiro a agosto de 1961) e Fernando Collor (1990 a 92). O cientista político da UFRJ vê Jair Bolsonaro indo “pelo caminho desses antecessores”. E aonde isso vai dar? “Os problemas tendem a se acumular e vamos nos distanciar da meta de um país viável”.
Nesta entrevista a Gabriel Manzano, o autor – com mais de 20 livros publicados –, que integra a Academia Brasileira de Letras e também a de Ciências, afirma que “o tsunami das redes sociais aumentará a fragmentação política”. Mas pondera, também, que “há sempre espaço para as recomposições políticas, dependendo da criatividade e da qualidade das lideranças”. A seguir, os principais trechos da conversa.
De que modo definiria a experiência política que o País viveu nestes 100 dias sob o governo Bolsonaro?
Já passamos por Jânio Quadros e Fernando Collor, os breves. Ambos foram impulsionados por eleitorado, em boa parte de classe média, insatisfeito com os padrões éticos vigentes na política, o primeiro brandindo uma vassoura, o segundo atacando marajás. Descuidados, ambos, do apoio parlamentar e partidário. Jânio governou por bilhetinhos, proibiu brigas de galo e biquínis, tentou um autogolpe, falhou e renunciou. Collor congelou a poupança dos outros, rivalizou com os marajás no trato com a coisa pública e renunciou sob a ameaça de impeachment.
Qual a comparação entre os dois e atual presidente?
Bolsonaro também surfou na onda anticorrupção – no caso, levantada pela Operação Lava Jato. Como seus dois antecessores, ele tem precário suporte partidário, postura autocrática na política, uma visão em preto e branco do Brasil e governo errático. Vai pelo caminho dos dois antecessores.
A nova equipe no Planalto revela falta de projeto nacional e uma escassa familiaridade com os processos do poder. Acredita que a força da ideologia – alardeada pela direita agora no poder – basta para garantir sua solidez no governo? Ou ele se desgasta aí pela frente?
Desgasta-se e se enfraquece. É um capitão cercado de generais (ainda bem) e por uma prole turbulenta, com visão estreita do mundo, sem plano geral de governo, com algumas propostas que podem ser desastrosas para o País, como as que se referem à política externa, à educação, ao meio ambiente, aos direitos humanos. Ele parece esquecer-se de que boa parte dos votos que o elegeram não foi a seu favor, mas contra o partido de seu adversário. Com pouco tempo na Presidência, já viu o apoio a seu governo cair a níveis mais baixos que os de seus antecessores. Seus dois ministros mais respeitados, o da Fazenda e o da Justiça, veem-se com frequência desautorizados e podem desembarcar do governo.
Como a esquerda sumiu do mapa, pode-se dizer que o País vive um novo momento? Como compara a atual “virada política”, que foi pelo voto, a rupturas como as de 1930, 1946, 1964?
Como sugeri acima, comparo a eleição do atual presidente com as de Jânio e de Collor. Todas as três democráticas e legítimas – ponto que nunca se deve esquecer, sob pena de se cometerem sérios erros de diagnóstico provocados pela ênfase excessiva em personalidades. Nenhuma dessas eleições configurou propriamente virada política. Foram antes sintomas de problemas com nosso sistema representativo, que não tem sido capaz de absorver a invasão de povo que se deu após a década de 1930.
Como explica esses sintomas?
Quer dizer que convivemos com um sistema que tem absorvido eleitoralmente grandes massas populares sem ter sido capaz de produzir politicas que atendam aos interesses dos novos cidadãos. No caso atual, os sinais de mal-estar já eram visíveis em 2013. Trata-se, a meu ver, do problema central do País: incorporar à sociedade e ao mercado as massas incluídas na política via exercício de governos republicanos.
É marcante o papel dos militares no novo governo. Focados, comedidos, têm hoje uma forte identificação com a sociedade. Como avalia isso?
Já de início não me preocupou a presença inédita de tantos militares no governo. Ela não me pareceu, como a muitos outros observadores, representar um perigo para nossa democracia, ou ameaça de retorno aos tempos da ditadura. A realidade tem sido ainda mais surpreendente. Os generais que ocupam alguns dos postos mais importantes do governo, inclusive a Vice-Presidência, têm-se revelado fator de equilíbrio e bom senso, evitando a adoção de algumas medidas desastrosas defendidas pelo ex-capitão, sobretudo na área da política externa.
É uma imagem bem diferente da que se formou em 1964.
Embora não representem as Forças Armadas no governo, eles têm consciência de que um fracasso teria repercussão negativa para a imagem da corporação. E um êxito ajudaria a melhorar essa mesma imagem perante setores da sociedade tradicionalmente críticos de seu envolvimento político.
O cenário fora do governo também é incerto. A bipolaridade PT-PSDB se esvaziou, as redes sociais ampliam espaço no debate. Para onde isso aponta?
Alguma reestruturação terá que haver. Mas o tsunami provocado pelas redes sociais aumentará a fragmentação política. A redução legal do número de partidos poderá facilitar um pouco a governança, mas não vai melhorar a representação. Poderemos estar condenados a surtos de instabilidade e ao surgimento de outras lideranças carismáticas.
A esquerda, especificamente, é a grande derrotada dos novos tempos. Qual caminho ela deveria buscar para se recompor?
Há sempre espaço para recomposições políticas, dependendo da criatividade e da qualidade das lideranças – embora a tarefa seja difícil, como mostra o exemplo espanhol. O PT, sobretudo, está diante de um dilema. De um lado, precisa do carisma de Lula para manter peso eleitoral. De outro, essa dependência dificulta, se não inviabiliza, qualquer possibilidade de renovação – que teria que passar por uma autocrítica, opção rejeitada por seu líder.
Alianças eleitorais com outros partidos poderiam ser um caminho para revalidar o petismo?
Muitos analistas concordam que, no ano passado, uma aliança eleitoral do PT com Ciro Gomes, sendo este o cabeça de chapa, teria tido boas possibilidades de ganhar as eleições. A ideia foi vetada por Lula. Desde meus tempos de estudante aprendi que, entre nós, as esquerdas brigavam mais entre si do que contra a direita. Mas o tema da desigualdade social está no centro dos problemas nacionais, exigindo políticas de inclusão, que são típicas da agenda da esquerda. Mas terá que ser uma nova esquerda, não clientelística e capaz de produzir desenvolvimento econômico com governos republicanos.
A “onda Bolsonaro” é também a onda das redes sociais e da direita em muitos outros países. Acredita que é só uma coincidência?
A onda das redes é universal, só tende a crescer. A arena política expande-se enormemente, colocando todos os cidadãos dentro dessa nova ágora que não exclui ninguém e que desafia a sempre problemática representação política feita por delegados escolhidos em eleições. Com isso, produz-se imensa cacofonia e se volta ao sentido primitivo de democracia como um perigoso governo das massas.
E de que modo o Brasil se encaixa nesse contexto?
O Brasil não foge a isso, nem pode fazê-lo enquanto houver liberdade de expressão. As razões do descontentamento de amplos setores sociais varia de país para país, mas uma delas é universal: o estreitamento da inclusão social via mercado de trabalho, que pode ser produzido pela imigração, pelo avanço tecnológico (a chamada quarta revolução industrial) e pela falta de crescimento econômico. Só escapamos da primeira dessas razões, considerando que o êxodo venezuelano não deva ter impacto nacional. Fica o problema: sermos um país com ampla participação política nas urnas e nas redes sem que se produza inclusão no mercado.
Há mudanças mais profundas pelo mundo – entre elas uma crescente crítica “aos limites da democracia”. Diz-se que ela não combina com os tempos de alta tecnologia. Que eleitores desinformados não estão preparados para escolher bons governos. O que pensa disso?
Em história, tudo passa. A engenhosa combinação de democracia e liberalismo também passará, como passaram o feudalismo, as teocracias, as monarquias absolutas, as aristocracias, as ditaduras de esquerda e de direita, para ficar só no Ocidente. Os sintomas da crise da democracia liberal estão sendo anunciados há algum tempo em democracias liberais maduras, como EUA, Espanha, Itália, Áustria. Em nosso caso, não chegamos a amadurecer nossa democracia liberal nem consolidar a nossa república – que é a forma de governo que a viabiliza. Houve tempo em que se falava das vantagens do atraso. Não apostaria nisso. O mais provável, no Brasil, é que acumulemos os problemas das duas fases e nos distanciemos da meta de um país viável.


Disponível em: http://diplomatizzando.blogspot.com/search/label/Jair%20Bolsonaro
Acesso em: 19.05.2019


Cláusulas Pétreas

2015 – OAB – FGV – Pedro, reconhecido advogado na área do direito público, é contratado para produzir um parecer sobre situação que envolve o pacto federativo entre Estados brasileiros. Ao estudar mais detidamente a questão, conclui que, para atingir seu objetivo, é necessário analisar o alcance das chamadas cláusulas pétreas.
Com base na ordem constitucional brasileira vigente, assinale, dentre as opções abaixo, a única que expressa uma premissa correta sobre o tema e que pode ser usada pelo referido advogado no desenvolvimento de seu parecer.
A)  As cláusulas pétreas podem ser invocadas para sustentar a existência de normas constitucionais superiores em face de normas constitucionais inferiores, o que possibilita a existência de normas constitucionais inconstitucionais.
B)  Norma introduzida por emenda à constituição se integra plenamente ao texto constitucional, não podendo, portanto, ser submetida a controle de constitucionalidade, ainda que sob alegação de violação à cláusula pétrea.
C) Mudanças propostas por constituinte derivado reformador estão sujeitas ao controle de constitucionalidade, sendo que as normas ali propostas não podem afrontar cláusulas pétreas estabelecidas na Constituição da República.
D)  Os direitos e as garantias individuais considerados como cláusulas pétreas estão localizados exclusivamente nos dispositivos do Art. 5º, de modo que é inconstitucional atribuir   essa   qualidade   (cláusula   pétrea)   a   normas fundadas em outros dispositivos constitucionais.

COMENTÁRIOS

2015 – OAB – FGV – Pedro, reconhecido advogado na área do direito público, é contratado para produzir um parecer sobre situação que envolve o pacto federativo entre Estados brasileiros. Ao estudar mais detidamente a questão, conclui que, para atingir seu objetivo, é necessário analisar o alcance das chamadas cláusulas pétreas.
Com base na ordem constitucional brasileira vigente, assinale, dentre as opções abaixo, a única que expressa uma premissa correta sobre o tema e que pode ser usada pelo referido advogado no desenvolvimento de seu parecer.
A)  As cláusulas pétreas podem ser invocadas para sustentar a existência de normas constitucionais superiores em face de normas constitucionais inferiores, o que possibilita a existência de normas constitucionais inconstitucionais.
B)  Norma introduzida por emenda à constituição se integra plenamente ao texto constitucional, não podendo, portanto, ser submetida a controle de constitucionalidade, ainda que sob alegação de violação à cláusula pétrea.
C) Mudanças propostas por constituinte derivado reformador estão sujeitas ao controle de constitucionalidade, sendo que as normas ali propostas não podem afrontar cláusulas pétreas estabelecidas na Constituição da República.
D)  Os direitos e as garantias individuais considerados como cláusulas pétreas estão localizados exclusivamente nos dispositivos do Art. 5º, de modo que é inconstitucional atribuir   essa   qualidade   (cláusula   pétrea)   a   normas fundadas em outros dispositivos constitucionais.

Comentários:

A resposta é letra “C”.

O poder constituinte divide-se em 1º grau e 2º grau. O de 1º grau é considerado originário, incondicionado, ilimitado e insubordinado. O de 2º grau, por sua vez, é secundário, derivado, condicionado e limitado pelas regras entalhadas pela própria Constituição. O de 2º grau manifesta-se, formalmente, pelo processo de Reforma à Constituição, representado, atualmente, pelas Emendas. Tais Emendas se incorporam à parte permanente da Constituição, e, por isto, igualam-se, em termos de hierarquia, às normas originárias. Porém, pelo fato de ser limitadas, acham-se sujeitas ao controle de constitucionalidade.

Os demais itens estão incorretos. Abaixo:

A)  As cláusulas pétreas podem ser invocadas para sustentar a existência de normas constitucionais superiores emface de normas constitucionais inferiores, o que possibilita a existência de normas constitucionais inconstitucionais.

No Brasil, não vigora a teoria de hierarquia entre as normas constitucionais, de modo que sejam elas originárias, sejam elas derivadas, não há como se cogitar de hierarquia formal. O fato de termos um núcleo pétreo não é fator decisivo para concluímos pela eventual subordinação e verticalidade entre as normas.

Portanto, em havendo eventual conflito entre as normas, a resolução dar-se-á pela preponderância entre os valores. Por exemplo: o que vale mais, a vida ou a liberdade de expressão? Não podemos afirmar, a priori, o que é maior, precisando do caso concreto para decidirmos o que prevalecerá. Se alguém decidi fazer greve de fome devido ao regime político adotado (liberdade de expressão), não há como o Estado amarrar a pessoa à cadeira e forçá-la à alimentação (direito à vida).

B)  Norma introduzida por emenda à constituição se integra plenamente ao texto constitucional, não podendo, portanto, ser submetida a controle de constitucionalidade, ainda que sob alegação de violação à cláusula pétrea.

As regras introduzidas à Constituição são fruto do Poder Constituinte Derivado Reformador, e, como sobredito, é enquadrado como secundário, limitado e subordinado. E, por ser limitado, acha-se preso às regras procedimentais, circunstanciais e materiais encontradas no próprio texto constitucional. Cite-se o exemplo das cláusulas pétreas, limitações materiais expressas ao poder de reforma.

D)  Os direitos e as garantias individuais considerados como cláusulas pétreas estão localizados exclusivamente nos dispositivos do Art. 5º, de modo que é inconstitucional atribuir   essa   qualidade   (cláusula   pétrea)   a   normas fundadas em outros dispositivos constitucionais.

Para o STF, o rol de direitos e garantias individuais, previsto no art. 5º, é meramente exemplificativo, podendo ser colhidos exemplos em outros pontos da Constituição. Um exemplo recorrente nos concursos públicos é o princípio da anterioridade anual (o da não surpresa), encontrado na Sistema Tributário Nacional, verdadeira garantia individual em proteção os contribuintes.
Comentários de Cyonil Borges
Disponível em: https://www.tecconcursos.com.br/dicas-dos-professores/prova-oab-2015-comentarios-direito-constitucional
Acesso em: 19.05.2019

De acordo com artigo 5º, § 2º, da CF, os direitos e garantias expressos na CF não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa seja parte.
Comentário de Bruna Vieira

Direitos e Garantias Constitucionais

Art. 5, § 2 da Constituição Federal de 88

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.


https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10641425/paragrafo-2-artigo-5-da-constituicao-federal-de-1988

Barbárie

*Luiz Sérgio Henriques: Cinquenta tons de barbárie

- O Estado de S.Paulo

A natureza proteiforme do populismo permite que ele se vista de direita ou de esquerda

Pudéssemos confiar em alguma forma de evolucionismo ou supor que a política acontece numa espécie de ringue previamente ordenado, em que os contendores só por descuido desferem golpes abaixo da cintura, então estaríamos num mundo em que extremistas não teriam vez nem voto. As democracias maduras do Ocidente teriam mantido força e capacidade expansiva, demonstradas quando, por exemplo, personalidades como Barack Obama, um negro, ou Angela Merkel, uma mulher egressa da velha Alemanha Oriental, se puseram à frente de seus países e se mostraram comprovadamente capazes de administrar situações complexas, como a grande recessão de 2008 ou os desafios da integração europeia.

As populações desses países, mesmo diante do impacto desorganizador trazido pela aceleração de mudanças tecnológicas ou por eventos extraordinários, como migrações massivas e a consequente formação de sociedades culturalmente heterogêneas, sempre teriam preferido tratar os conflitos daí decorrentes segundo padrões razoáveis e já submetidos aos testes da História. Longe de desaparecer, tais conflitos, inseridos na lógica democrática e tratados, quando fosse o caso, em instâncias internacionais assentadas nos direitos do indivíduo e na convivência pacífica, produziriam frutos positivos para todos, ao menos tendencialmente.

Nós, no Extremo Ocidente, a nosso modo replicaríamos esse procedimento. A planta frágil dos valores liberais e da incorporação social estaria finalmente sob bons cuidados. Seríamos educados politicamente pela Carta de 1988, a qual por sua própria natureza nos impôs a todos – centro, direita, esquerda – a tarefa da autorreforma de atitudes e modos de pensar. Nenhuma concessão ao golpismo tantas vezes manifestado em momentos críticos do passado. Ódio e nojo permanente às ditaduras, tal como proclamado por um dos pais da refundação da República. E como consequência, disputa áspera, mas institucionalmente enquadrada, em torno de ideias, projetos e políticas capazes de integrar milhões de concidadãos aos benefícios – e deveres – de uma sociedade aberta e dinâmica.

É evidente que falhamos coletivamente em pontos decisivos desse programa. A Carta de 1988 permanece como ideal regulador extremamente potente, razão pela qual devemos nos reunir em sua defesa sempre que ameaçada ou levianamente criticada por impor obstáculos de qualquer natureza ao nosso desenvolvimento como sociedade. Mas, como fatos e números atestam, eis-nos já na parte final de uma segunda década perdida, sem que, diferentemente da primeira, a dos anos 1980, possamos agora nos orgulhar de conquistas de alta relevância, como, naquela altura, a reconquista da democracia. Ao contrário, estamos em meio às tempestades naturais de uma conjuntura em que, mesmo mantidas as regras do jogo, autoritários estão no poder, embora não possam (ainda?) pôr em prática todo um repertório que, muitas vezes, reproduz o de uma estranha “internacional” que tenta depredar as instituições do Ocidente político.

Falhamos – e nisso a esquerda petista deu nociva contribuição – em enraizar solidamente a crença de que adversários políticos não são inimigos. Apesar do aspecto aparente de senso comum, como dizem Steven Levitsky e Daniel Ziblatt no best-seller sobre o colapso “suave” das democracias contemporâneas, essa crença é “uma invenção notável e sofisticada”. O “eles contra nós”, irredutivelmente martelado durante anos entre “nacional-populares” e “neoliberais”, foi a senha para a entrada em cena de antagonismos ainda mais ferozes e inconciliáveis. A democracia requer e suporta polarizações produtivas, mas tem dificuldade de conviver com aquelas de que se aproveitam atores e personagens demagogicamente contrários ao establishment, especialmente quando, na verdade, tais atores expressam os poderes fortes da sociedade, e não o “povo” convocado para passivamente sustentar mitos e legitimar autocratas.

É possível apontar o caráter mais ou menos global desses fatos, embora seja este um consolo mau e precário. Não vivemos em solidão a ofensiva populista contra as instituições, para usar o ambíguo termo – populismo – a que críticos e adeptos têm recorrido com igual frequência. Mark Lilla, em O Progressista de Ontem e o de Amanhã, anotou uma expressão extraordinariamente radicalizada do subversivismo de direita que vai pelo mundo: “Meu cidadão ideal é o sujeito que trabalha por conta própria, estuda em casa, separa dinheiro para a própria aposentadoria e tem licença para andar armado. Pois essa pessoa não precisa do maldito governo para nada”. Aqui se condensam, de modo lapidar, os desvalores de uma direita patologicamente individualista e supostamente antipolítica, ainda que, por óbvio, possa combinar-se com variadas formas de governo despótico.

Ao empregarmos a noção de populismo, não devemos contar com ideias e programas coerentes. A natureza proteiforme do fenômeno lhe permite vestir-se de direita ou de esquerda, como na imensa tragédia venezuelana. O populista pode entoar loas à “tradição judaico-cristã” ou, como na Hungria de Orbán, recorrer ao vulgar antissemitismo. A islamofobia, se for o caso, convém-lhe como uma luva, servindo para catalisar medos coletivos. Pode renunciar ao individualismo à americana, como aquele captado por Lilla, e apelar, ao contrário, à “ressurreição” do povo e de usos arcaicos que sufocam o indivíduo. Só não pode, em qualquer caso, renunciar aos cinquenta ou mais tons de grosseira demagogia antidemocrática.

Se o evolucionismo não nos serve e, por isso, nenhum progresso está assegurado de uma vez por todas, pode ser que este tumultuado processo de unificação do mundo em algum momento nos surpreenda com o amadurecimento e a mobilização das mais diferentes forças e tradições, laicas e religiosas. Todas elas, em sua diversidade, são preciosas na luta contra a barbárie.

*Tradutor e ensaísta, é autor de Reformismo de esquerda e democracia política (Fundação Astrojildo Pereira, 2018)

Disponível em: http://gilvanmelo.blogspot.com/2019/05/luiz-sergio-henriques-cinquenta-tons-de.html?m=1
Acesso em: 19.05.2019

Pesadelo


*José de Souza Martins: Pesadelo kafkiano

- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Como em "A Metamorfose", de Kafka, amanhecemos como o estranho ser que não somos
A cultura de uma escolaridade simples foi o espetáculo, nas últimas semanas, nas falas de membros do governo, que a expressaram em manifestações sobre diferentes temas da educação e da ciência. O ministro da Educação considerou-se vítima de um processo como o de kafta (churrasquinho árabe).

Provavelmente, quis dizer "O Processo", livro de Franz Kafka, escritor tcheco, autor de obras emblemáticas da literatura do absurdo. Como em "A Metamorfose", desse autor, amanhecemos, no dia 1º de janeiro, como o estranho ser que não somos. Esse é nosso pesadelo kafkiano.

O mesmo governo que sataniza a universidade pública tem um ministro da Economia, que foi bolsista do CNPq, cuja ascensão ao poder coincidiu com extemporâneas chamadas de reportagem de TV sobre a Universidade de Chicago. Onde ele fez cursos de pós-graduação depois de uma graduação na UFMG, universidade pública e gratuita. Os Prêmios Nobel de Chicago foram ressaltados. Nas boas universidades, porém, é a nota do próprio aluno, e não a nota dos outros, que diz qual é sua competência.

Faz lembrar Thorstein Veblen, em seu "A Teoria da Classe Ociosa", e sua tese sobre prestígio vicário que decorre da dependência em relação a quem tem prestígio próprio. Aqui, competência não é vicária: ou se tem ou não se tem. O país está à espera da comprovação de que a economia do ministro resolverá nossas questões sociais para criar mercado e resolver nossas questões econômicas.

O vistoso talento se confirmará se o problema gravíssimo do desemprego for resolvido, apesar das medidas draconianas que vêm por aí e da falta de políticas sociais. E se os graves problemas nacionais decorrentes de ignorância e de impróprias políticas de educação forem resolvidos como passo decisivo para a integração social dos banidos da modernização e do crescimento econômico rentista.

No capítulo da obsessão pelo diploma e seu simbolismo e a pouca preocupação com o conteúdo do que o diploma representa, temos fatos melancólicos. Quando era ministro da Educação da ditadura, o coronel Jarbas Passarinho foi à operária Osasco (SP) participar de uma cerimônia de diplomação de alunos do curso de alfabetização de adultos do Mobral. Que, aliás, adotava o mesmo método de Paulo Freire, hoje satanizado pelo governo, que não sabe quem ele foi, mas dele tem raiva. Para espanto de um jornalista, o diploma dizia que "Fulano de Tal não está alfabetizado". Diploma de analfabeto, mas diploma é diploma. Diz algo, ainda que nem sempre diga tudo.

Idolatrar o diploma, e não o conhecimento, é pluripartidário. Lula, um dos políticos brasileiros mais inteligentes, apesar de não ter a escolaridade que gostaria, frequentes vezes demonstra sua frustração pela falta de diplomas. Emocionou-se ao receber da Justiça Eleitoral o diploma de presidente da República, mais do que na posse.

Petistas destacaram os diplomas de doutor honoris causa que ele recebeu no Brasil e no exterior. Um deles chegou a comparar o número de diplomas que recebera com os recebidos por Fernando Henrique Cardoso. Destacou que Lula tinha mais diplomas. Mas não disse que os de FHC não eram só os honoríficos. Eram sobretudo os da competência científica e das teses defendidas. Lula gosta de depreciar, sem motivo, os títulos acadêmicos. De outro modo, é o que faz o governo de agora. Vários de seus sábios chegaram ao poder porque passaram por curso americano de ciência oculta de uma nota só.

Mais que a idolatria do diploma vazio, ameaça a sanidade política do país o desapreço pela ciência e pelos méritos da ciência brasileira que vem da boca do governante. O governo deprecia a filosofia e a sociologia, o que mostra ignorância, e não sabedoria.

Em deplorável afirmação do presidente da República, na Universidade Mackenzie, ao louvar a pesquisa naquela universidade sobre o grafeno, desinformado, declarou que a universidade pública brasileira não faz pesquisa científica. Emitiu juízo sobre o que desconhece.

O projeto do Mackenzie tem como parceira decisiva a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), instituição que recebe 1% da arrecadação estadual para apoio a projetos de pesquisa e concessão de bolsas de estudo para formação de novos cientistas. É ela governada por cientistas vinculados sobretudo a universidades públicas, que apoia pesquisas principalmente nelas e também nas empresas, em todos os campos do conhecimento. O que é próprio das instituições de fomento da educação científica e da ciência.

O projeto do grafeno só foi viável com recursos da Fapesp. Ignorar esse fato é ignorar muito mais. Só São Paulo, sobretudo nas universidades públicas, produz mais da metade da pesquisa científica do país.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano” (Contexto).

Disponível em: http://gilvanmelo.blogspot.com/2019/05/jose-de-souza-martins-como-em.html?m=1
Acesso em: 19.05.2019


Pesadelo (Paulo César Pinheiro e Mauricio Tapajós) - vers. Completa

Pesadelo (Paulo César Pinheiro e Mauricio Tapajós) - vers. completa Larissa Finocchiaro - vozes, violão e arranjo Rafael Mota - percussão Captação de áudio e vídeo - Rapadura Produções

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QRobWlQ-zN8
Acesso em: 20.05.2019

Governo interno

Antes subjugo o meu corpo e o reduzo à servidão, para que, pregando aos outros, eu mesmo não venha de algum modo ficar reprovado.
- Paulo (I – Coríntios, 9:27.)

Referências

http://gilvanmelo.blogspot.com/2019/05/opiniao-do-dia-jose-murilo-de-carvalho_17.html?m=1
https://cultura.estadao.com.br/blogs/direto-da-fonte/wp-content/uploads/sites/290/2015/08/jose-murilo-de-carvalho-1-460x332.jpg
http://diplomatizzando.blogspot.com/search/label/Jair%20Bolsonaro
https://www.tecconcursos.com.br/dicas-dos-professores/prova-oab-2015-comentarios-direito-constitucional
https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10641425/paragrafo-2-artigo-5-da-constituicao-federal-de-1988
http://gilvanmelo.blogspot.com/2019/05/luiz-sergio-henriques-cinquenta-tons-de.html?m=1
http://gilvanmelo.blogspot.com/2019/05/jose-de-souza-martins-como-em.html?m=1
https://www.youtube.com/watch?v=QRobWlQ-zN8

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