segunda-feira, 20 de maio de 2019

22. O SEGREDO DA GUILHOTINA


VILLlERS DE L'ISLE-ADAM (1838-1889 | França)

“Então, em passos lentos, ar absorto e grave! - voltou para seu carro estacionado na esquina da prisão. Ao subir nele, avistou o furgão de justiça que se afastava a trote para Montparnasse.”

ARTIGO 302.
Qualquer pessoa culpada de assassinato, parricídio, infanticídio e envenenamento, será punido com a morte, sem prejuízo das disposições especiais previstas no artigo 13, em relação ao parricídio.
Código Penal Francês de 1810 - Traduzido

Auguste Villiers de L'Isle-Adam se julgava pré-destinado a renovar a literatura de sua época. Poeta, contista, romancista e dramaturgo, ele em parte cumpriu a sua ambição, em obras como Contos Cruéis (1883), A Eva Futura (1886), Histórias Insólitas (1888), dentre outras. No conto escolhido, a guilhotina, símbolo cruel da justiça francesa da época, entra como uma espécie de personagem secundário, embora não menos importante. (Afinal, o crime institucional, por ser institucional, pode ser considerado um crime?) Note-se a ênfase que o autor dá à ciência (no caso, a Medicina) e, portanto, ao raciocínio lógico, o que seria comum um pouco mais tarde, nos primeiras obras de ficção policial.


A Edmond de Goncourt

As recentes execuções me trazem à lembrança a extraordinária história que lhes conto: 

Naquela noite, em 5 de junho de 1864, por volta das sete horas, o médico Edmond-Désiré Couty de La Pommerais, recentemente transferido da Conciergerie para La Roquette, estava sentado, vestido com a camisa-de-força, na cela dos condenados à morte.

Taciturno, apoiava os cotovelos nas costas da cadeira, os olhos fixos. Sobre a mesa, uma vela iluminava a palidez de seu rosto frio. A dois passos, um guarda, de pé, encostado à parede, observava-o, de braços cruzados.

Quase sempre, os presos são obrigados a cumprir uma tarefa diária, por um salário do qual a administração recolhe, antes de tudo, o preço de sua mortalha, que ela não fornece. - Somente os condenados à morte não têm qualquer tarefa a executar.

O prisioneiro era daqueles que não escondem o jogo: em seu olhar, nem medo nem desespero.

Trinta e quatro anos, moreno, de constituição média, na verdade bastante bem-apessoado. Têmporas começando a ficar grisalhas, olhar nervoso, semicerrado. Testa de pensador, voz monótona e lacônica, mãos soturnas. A fisionomia dissimulada das pessoas malfalantes, maneiras de uma distinção estudada. Assim era sua aparência.

(Todos se lembram que, no tribunal do Sena, a defesa de Mestre Lachaud, embora muito austero naquela ocasião, não eliminara da consciência dos jurados o triplo efeito produzido pelos debates, pelas conclusões do Dr. Tardieu e pela acusação de Oscar de Vallée. Convencido de ter o Sr. de La Pommerais ministrado, com intenções cúpidas e premeditação, doses mortais de digitalina a uma senhora sua amiga - Madame de Pauw -, decidiu pronunciar contra ele, mediante a aplicação dos artigos 301 e 302 do Código Penal, a sentença capital.)

Naquela tarde, às 5 horas, ele ignorava ainda a rejeição do recurso ao Supremo, bem como a recusa de qualquer audiência de graça solicitada por seus afins. Quando muito, o seu defensor, mais feliz, foi distraidamente ouvido pelo Imperador. O venerável abade Crozes que, antes de cada execução, exauria-se em súplicas às Tulherias, voltara sem resposta. - Comutar a pena de morte, em tais circunstâncias, não seria, implicitamente, aboli-Ia? - O caso era exemplar. - No parecer do Ministério Público, a rejeição do recurso não apresentara dúvidas, devendo ser notificada a qualquer momento. O Sr. Hendreich acabara de ser convocado para providenciar a entrega do condenado no dia nove, pela manhã, às cinco horas.

De repente, um barulho de coronhas de fuzis ecoou no lajeado do corredor. A fechadura rangeu lentamente. A porta se abriu. As baionetas brilharam na penumbra. O diretor de La Roquette, Sr. Beauquesne, apareceu na soleira, acompanhado de um visitante.

La Pommerais, tendo levantado a cabeça, reconheceu de imediato, no visitante, o ilustre cirurgião Armand Velpeau.

A um sinal de quem de direito, o guarda saiu. Tendo o Sr. Beauquesne, após uma muda apresentação, se retirado também, os dois colegas encontraram-se repentinamente a sós, de pé, um diante do outro, e olhos nos olhos.

La Pommerais, em silêncio, indicou ao médico sua própria cadeira e foi sentar-se sobre aquele catre de onde os adormecidos são, em sua maioria, despertos da vida num sobressalto. - Como ali se via mal, o grande clínico aproximou-se do. .. doente, para observá-lo melhor e poder conversar em voz baixa.

***

Velpeau, naquele ano, entrava na casa dos sessenta. No apogeu de sua fama, herdeiro da cadeira de Larrey no Instituto, primeiro professor de clínica cirúrgica de Paris e, por suas obras, todas de um rigor de discussão tão claro e tão vivo, um dos luminares da ciência patológica atual, o emérito médico impunhase já como uma das sumidades do século.

Após um frio momento de silêncio:

- Senhor, disse ele, entre médicos, devemos nos poupar de inúteis condolências. Aliás, um mal na próstata (do qual certamente devo morrer em dois anos, ou dois anos e meio) classifica-me também, com alguns meses de vencimento a mais, na categoria dos condenados à morte. Vamos então ao fato, sem preâmbulos.

- Então, a seu ver, doutor, minha situação judiciária é... desesperadora? interrompeu La Pommerais.

- Receia-se que sim, respondeu simplesmente Velpeau.

- Minha hora está marcada?

- Ignoro, mas, como nada ainda foi decidido a seu respeito, pode contar, sem qualquer dúvida, com alguns dias.

La Pommerais passou, sobre sua testa lívida, a manga de sua camisa-deforça.

- Que seja. Obrigado. Estarei pronto: eu já estava; - daqui em diante, quanto antes melhor!
- Seu recurso não tendo sido rejeitado, pelo menos até o momento, recomeçou Velpeau, a proposta que lhe vou fazer é apenas condicional. Se a salvação chegar, tanto melhor!... Senão. ..

O grande cirurgião parou.

- Senão? .. pergunta La Pommerais. Velpeau, sem responder, pegou em seu bolso um pequeno estojo, abriu-o, tirou a lanceta e, abrindo a camisa com o pulso esquerdo, apoiou o dedo médio sobre o pulso do jovem condenado.

- Sr. de La Pommerais, disse ele, seu pulso me revela um sangue-frio e uma firmeza raros. A missão que venho cumprir junto ao senhor (e que deve ser mantida secreta) tem por objetivo uma espécie de oferta que, mesmo endereçada a um médico de sua energia, a um espírito temperado pelas convicções positivas de nossa Ciência e bem afastado de quaisquer pavores fantásticos da Morte, poderia parecer de uma extravagância ou de um escárnio cruéis.

- Sou todo ouvidos, respondeu La Pommerais.

- O senhor certamente sabe, recomeçou Velpeau, que uma das questões mais interessantes da fisiologia moderna é saber se algum vestígio de memória, de reflexão, de sensibilidade real persiste no cérebro do homem após a separação da cabeça.

Com esta introdução inesperada, o condenado estremeceu. Então, recompondo-se:

- Quando o senhor chegou, doutor, respondeu ele, eu estava exatamente muito preocupado com este problema, duplamente interessante para mim, aliás.

- O senhor tem conhecimento dos trabalhos escritos a propósito desta questão, desde os de Scemmering, Süe, Sedillot e Bichat até os dos modernos?

- E cheguei a assistir, no passado, a um de seus cursos de dissecação nos restos de um supliciado.

-Ah! Adiante, então. - O senhor tem noções exatas, do ponto de vista cirúrgico, sobre a guilhotina?

La Pommerais, olhando bem para Velpeau, respondeu friamente:

- Não, senhor.

- Eu estudei escrupulosamente o aparelho hoje mesmo, continuou, sem se emocionar, o Dr. Velpeau: - é, eu atesto, um instrumento perfeito. A lâmina agindo, simultaneamente, como cunha, foice e maça, seciona, em chanfro, o pescoço do paciente em um terço de segundo. O decapitado, sob o choque de tal golpe fulgurante, não pode então sentir mais dor do que a que um soldado sente, no campo de batalha, ao ter seu braço mandado para o ar por uma bala. A sensação, por falta de tempo, é nula e obscura.

- Talvez haja a dor remanescente; restam duas feridas em carne viva! - Não é Julia Fontenelle que, dando seus motivos, pergunta se a própria velocidade não tem conseqüências mais dolorosas do que a execução pelo aço ou pelo machado?

- Bastou Bérard para fazer justiça a este devaneio! respondeu Velpeau. "Quanto a mim, tenho a convicção, baseada em cem experiências e em minhas observações particulares, de que a ablação instantânea da cabeça produz, no mesmo instante, no individuo degolado, o mais absoluto desfalecimento anestésico.

"A própria síncope, instantaneamente provocada pela perda de quatro ou cinco litros de sangue que irrompem dos vasos - (e, muitas vezes, com uma força de projeção circular de um metro de diâmetro) -, seria suficiente para tranqüilizar os mais medrosos a este respeito. Quanto aos sobressaltos inconscientes da máquina carnal, interrompida subitamente demais em seu processo, também não constituem um índice de sofrimento maior do que. .. o palpitar de uma perna cortada, por exemplo, cujos músculos e nervos se contraem, mas da qual não mais se sofre. Digo que a febre nervosa da incerteza, a solenidade dos preparativos fatais e o sobressalto do despertar matinal são, aqui, o que há de mais claro do pretenso sofrimento. Não sendo a amputação senão imperceptível, a dor real é apenas imaginária. Ora! Tal golpe violento sobre a cabeça não somente não é sentido, mas não deixa consciência alguma de seu choque - uma simples lesão das vértebras provoca a insensibilidade atáxica -, e a total retirada da cabeça, a cisão da espinha dorsal, a interrupção das relações orgânicas entre o coração e o cérebro, não seriam suficientes para paralisar, no mais íntimo do ser humano, qualquer sensação, mesmo vaga, de dor? Impossível! Inadmissível! E o senhor sabe disto tanto quanto eu."

- Espero que, pelo menos, mais do que o senhor! respondeu La Pommerais. Portanto, não se trata, na realidade, de algum grande e rápido sofrimento físico (levemente percebido na angústia sensorial e muito rapidamente abafado pela invasora ascendência da Morte), não é absolutamente isto, digo, o que receio. É outra coisa.

- O senhor quer tentar explicar? disse Velpeau.

- Ouça, murmurou La Pommerais depois de um silêncio, definitivamente, os órgãos da memória e da vontade (se estão circunscritos, no Homem, nos mesmos lobos nos quais os constatamos. .. no cão, por exemplo), estes órgãos, quero dizer, são respeitados pela passagem da lâmina!

"Por vezes demais já corrigimos equívocos anteriores, tão inquietantes quanto incompreensíveis, para que eu me deixe facilmente persuadir da imediata inconsciência de um decapitado. Segundo as lendas, quantas cabeças, interpeladas, voltaram seu olhar para o inquiridor?

"Lembre-se da cabeça daquele marujo que, na clínica de Brest, uma hora e quinze minutos depois da degola, partiu em dois, com um movimento dos maxilares - talvez voluntário -, um lápis colocado entre eles!... Ficando apenas com este exemplo, entre mil, a questão real seria então saber, aqui, se foi, ou não, o eu desse homem que, após a cessação da hematose, sensibilizou os músculos de sua cabeça exangue."

- O eu não existe senão no conjunto, disse Velpeau.

- A medula espinhal prolonga o cerebelo, respondeu La Pommerais. Sendo assim, onde estaria o conjunto sensitivo? O que poderá revelá-lo? - Antes de oito dias, terei, sem dúvida, aprendido!... e esquecido.

- Talvez dependa do senhor que a Humanidade seja esclarecida, de uma vez por todas, respondeu lentamente Velpeau, olhos nos olhos de seu interlocutor. - E, falemos francamente, é por isto que estou aqui.

"Represento junto ao senhor uma comissão de nossos mais eminentes colegas da Faculdade de Paris e eis aqui meu salvo-conduto assinado pelo Imperador. Ele contém poderes suficientemente extensos para, se necessário, sustar com um sursis a própria ordem de sua execução."

- Explique-se... não o compreendo mais, respondeu La Pommerais, perplexo.

- Senhor de La Pommerais, em nome da ciência que nos é sempre cara e que perdeu a conta, entre nós, do número de seus mártires magnânimos, venho (na hipótese, para mim mais que duvidosa, de que qualquer experiência, acordada entre nós, seria praticável) solicitar de todo o seu ser a maior soma de energia e intrepidez que se possa esperar da espécie humana. Se seu recurso de graça for rejeitado, o senhor se encontra, sendo médico, na posição de alguém capacitado para realizar a suprema operação que deve sofrer. Sua ajuda seria, portanto, inestimável numa tentativa de... comunicação, neste caso. Sem dúvida, por maior boa vontade da qual o senhor poderia se propor a dar provas, tudo parece atestar de antemão o resultado mais negativo possível; - mas, enfim, com o senhor - (sempre na hipótese de que esta experiência não fosse, em princípio, absurda) -, ela oferece uma oportunidade em dez mil de esclarecer miraculosamente, por assim dizer, a Fisiologia moderna. A ocasião deve ser, desde já, aproveitada e, no caso de um sinal de inteligência vitoriosamente manifestada após a execução, o senhor deixaria um nome do qual a glória científica apagaria para sempre a lembrança de sua falha social.

- Ah! murmurou La Pommerais, lívido mas com um sorriso resoluto - ah! - começo a compreender!... - Na verdade, os suplícios já nos revelaram o fenômeno da digestão, nos diz Michelot. E... de que natureza seria a sua experiência?... Choques galvânicos? Incitações do ciliar?... Injeções de sangue arterial?. .. Pouco concludente, tudo isto!

- Não é preciso dizer que, imediatamente após a triste cerimônia, seus restos irão repousar em paz na terra e que nenhum de nossos escalpelos o tocará, recomeçou Velpeau.

- Não. .. Mas ao cair da lâmina eu estarei lá, de pé, à sua frente, junto à máquina. O mais rapidamente possível, sua cabeça passará das mãos do executor para as minhas. E então - a experiência só podendo ser séria e concludente devido à sua própria simplicidade - eu gritarei, muito claramente, em sua orelha: "- Senhor Couty de La Pommerais, de acordo com o que combinamos, o senhor pode, neste momento, abaixar, três vezes seguidas, a pálpebra de seu olho direito, mantendo seu outro olho bem aberto?" - Se, nesse momento, sejam quais forem as outras contrações da fácies, o senhor puder, por esta tripla piscadela, advertir-me de que ouviu e compreendeu e me provar, provocando assim, por um ato de memória e de vontade permanentes, seu músculo palpebral, seu nervo zigomático e sua conjuntiva - dominando todo o horror, todo o tumulto das outras impressões de seu ser -, este fato bastará para esclarecer a Ciência, revolucionar nossas convicções. E eu saberei, não tenha dúvidas, notificá-lo de tal forma que, no futuro, o senhor tenha deixado menos a marca de um criminoso do que a de um herói.

Diante destas insólitas palavras, La Pommerais pareceu atingido por uma comoção tão profunda que, pupilas dilatadas e fixas no cirurgião, ele permaneceu, durante um minuto, silencioso e como que petrificado. - Depois, sem dizer palavra, levantou-se, deu alguns passos, muito pensativo e, logo, sacudindo tristemente a cabeça:

- A horrível violência do golpe me deixará fora de mim. Realizar isto me parece além de qualquer vontade, de qualquer esforço humano! disse ele. Aliás, dizem que as oportunidades de vitalidade não são as mesmas para todos os guilhotinados. Entretanto... volte, senhor, na manhã da execução. Eu lhe responderei se me presto, ou não, a essa tentativa ao mesmo tempo apavorante, revoltante e ilusória. - Se for não, conto com sua discrição, não é mesmo?, para deixar minha cabeça sangrar tranqüilamente suas ultimas vitalidades dentro do balde de estanho que a receberá.

- Até breve, então, Sr. de La Pommerais? disse Velpeau levantando-se também. Reflita.

Ambos se cumprimentaram.

No momento seguinte, o Dr. Velpeau deixava a cela: o guarda voltava e o condenado deitava-se, resignado, em seu catre para dormir ou pensar.

***

Quatro dias depois, por volta das cinco e meia da manhã, o Sr. Beaunesque, o abade Crozes, o Sr. Claude e o Sr. Potier, escrivão da Corte Imperial, entraram na cela. Acordado na nova hora fatal, o Sr. de La Pommerais sentou-se bastante pálido e vestiu-se rapidamente. Depois, conversou por dez minutos com o abade Crozes, cujas visitas já havia recebido bem: sabe-se que o santo padre era dotado daquela unção de inspirado que torna corajosa a hora final. A seguir, vendo chegar o Dr. Velpeau:

- Eu trabalhei, disse ele. Veja !

E, durante a leitura da sentença, manteve fechada sua pálpebra direita olhando fixamente para o cirurgião com seu olho esquerdo bem aberto.

Velpeau inclinou-se profundamente e então, voltando para o Sr. Hendreich, que entrava com seus ajudantes, trocou, bem depressa, com o executor, um gesto de entendimento. Os preparativos foram rápidos: alguém observou que o fenômeno dos cabelos embranquecendo a olhos vistos sob a tesoura não ocorreu. Uma carta de adeus de sua mulher, lida em voz baixa pelo capelão, molhou seu olhos de lágrimas que o padre enxugou piedosamente com um pedaço puxado da gola da camisa. Uma vez de pé e sua sobrecasaca atirada sobre os ombros, foi preciso afrouxar os cordões de seus pulsos. Então ele recusou o copo de aguardente - e o cortejo se pôs em marcha pelo corredor. Ao chegar ao portal, encontrando, na soleira, seu colega:

- Até breve! disse-lhe ele bem baixo - e adeus.

Repentinamente, os grandes batentes de ferro se entreabriram e rolaram diante dele.

O vento da manhã entrou na prisão. Nascia o dia: estendia-se, ao longe, a grande praça, cercada por um duplo cordão de cavalaria. À frente, a dez passos, num semicírculo de guardas a cavalo, cujos sabres, desembainhados à sua aparição, retiniram, surgia o cadafalso. A alguma distância, entre os enviados da imprensa, cabeças se descobriam.

Adiante, atrás das árvores, ouviam-se os ruídos enfurecidos da multidão, enervada pela noite. Nos telhados das tabernas, às janelas, algumas moças maltratadas, lívidas, em sedas vistosas - umas segurando ainda uma garrafa de champanhe -, inclinavam-se na companhia de tristes ternos negros. - Ao ar matinal, sobre a praça, andorinhas voavam, daqui, dali.

Solitária, preenchendo o espaço e limitando o céu, a guilhotina parecia prolongar sobre o horizonte a sombra de seus dois braços erguidos, entre os quais, bem longe, lá no alto, onde a aurora azulava, via-se cintilar a última estrela.

Diante desse quadro fúnebre, o condenado estremeceu, depois caminhou resoluto para a saída... Primeiro subiu os degraus. Agora a lâmina triangular brilhava sobre o caixilho negro, ocultando a estrela. Diante do palco fatal, depois do crucifixo, beijou aquele pressagiador cacho de seus próprios cabelos, colhido durante os preparativos pelo abade Crozes, que lhe tocou com ele os lábios: "- Para ela !"... disse ele.

Os cinco personagens destacavam-se, em silhuetas, sobre o cadafalso: o silêncio, naquele instante, se fez tão profundo que o ruído de um galho quebrado, ao longe, ao peso de um curioso, chegou, com o grito e alguns vagos e hediondos risos, até o grupo trágico. Então, quando soava a hora da qual ele não deveria ouvir a última badalada, La Pommerais avistou, em frente, do outro lado, seu estranho pesquisador que, uma das mãos sobre a plataforma, o observava!... Ele recolheu-se por um segundo e fechou os olhos.

Bruscamente, o básculo moveu-se, a canga abateu-se, a alavanca cedeu, o brilho da lâmina passou. Um choque terrível sacudiu a plataforma, os cavalos empinaram ao odor magnético do sangue e o eco do ruído vibrava ainda quando já a cabeça da vítima palpitava entre as mãos impassíveis do cirurgião de La Pitié, avermelhando-lhe em jatos os dedos, os punhos e as roupas.

Era um rosto sombrio, horrivelmente branco, de olhos reabertos e como que distraídos, sobrancelhas retorcidas, ricto crispado. Os dentes entrechocavam-se. O queixo, na extremidade do maxilar inferior, havia sido ferido.

Velpeau inclinou-se rápido sobre aquela cabeça e articulou, no ouvido direito, a pergunta combinada. Por mais inabalável que fosse aquele homem, o resultado o fez vibrar com uma espécie de pavor frio: a pálpebra do olho direito abaixouse, o olho esquerdo, distendido, olhava para ele.

- Em nome do próprio Deus e de nosso ser, mais duas vezes este sinal! gritou ele um pouco desvairado.

Os cílios se separaram, como por um esforço interno, mas a pálpebra não mais se ergueu. O rosto, a cada segundo, tornava-se rígido, glacial, imóvel. Estava acabado.

O Dr. Velpeau entregou a cabeça morta ao Sr. Hendreich, que, reabrindo o cesto, colocou-o, conforme o hábito, entre as pernas do tronco já inerte.

O grande cirurgião banhou as mãos num dos baldes destinados à lavagem, já começada, da máquina. Ao seu redor a multidão escoava-se, pensativa, sem reconhecê-lo. Ele secou-se, sempre em silêncio.

Então, em passos lentos, ar absorto e grave! - voltou para seu carro estacionado na esquina da prisão. Ao subir nele, avistou o furgão de justiça que se afastava a trote para Montparnasse.

Tradução de Celina Portocarrero

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