"O
registro dos crimes, loucuras e desventuras da humanidade".
MICHELANGELO DA CARAVAGGIO
“Aqueles
personagens, banhados por uma luz divina e refinada, de uma beleza absurda,
eram a imagem da vida de Caravaggio. A luz de Caravaggio é trágica.” Ana
Miranda
"Eu tenho os meus princípios, já disse. Não mato mulher, criança e anão. E sou honesto." Rubem Fonseca
"Eu tenho os meus princípios, já disse. Não mato mulher, criança e anão. E sou honesto." Rubem Fonseca
QUADRO DO DEUS ROMANO ESTÁ EM EXPOSIÇÃO EM FLORENÇA
Descoberto
autorretrato de Caravaggio no quadro “Baco”
LUSA
30 de Outubro de 2009, 14:36
O
quadro tem 95×85 cm DR
Caravaggio pintou o seu autorretrato no interior do
jarro de vinho visível à direita de Baco, no famoso quadro do pintor do deus
romano existente na Galeria dos Ofícios, em Florença, segundo peritos italianos
citados hoje pela imprensa.
A descoberta foi feita por restauradores e
investigadores, através de uma sofisticada análise com recurso a instrumentos
da mais avançada tecnologia.
Os resultados da investigação serão hoje comunicados
oficialmente ao Comité Nacional para as Celebrações do quarto centenário da
morte do pintor, em 1610.
No interior do jarro, Caravaggio pintou a silhueta
de um homem, de pé, com um braço estendido. Alguns traços do vulto são
claramente distinguíveis, em particular o nariz e os olhos, sendo também
perceptível um colarinho.
Os especialistas crêem poder hoje dizer-se que o
pintor (1573-1610) fez o seu auto-retrato reflectido num jarro que tinha à sua
frente enquanto estava a pintar.
Segundo o jornal italiano "La Stampa", há
já algum tempo que se dizia que o vulto de Michelangiolo Merisi da Caravaggio
deveria estar oculto num ponto qualquer do quadro, mas ninguém até hoje pudera
demonstrá-lo.
Baco, um quadro a óleo de 95 por 85 centímetros, foi
pintado por Caravaggio em 1596 e 1597 por encomenda do cardeal Del Monte para o
oferecer a Fernando I de Medici, por ocasião do casamento do filho Cosimo II.
"Recomeçar"
1979
HE'S
MY BROTHER
1969
Caravaggiando
o velho mundo em dez/2017
Para
recaravaggiar o novo mundo em jan/2018
Caravaggio:
A Vocação De São Mateus (Pinceladas de Arte)
O
martírio de São Mateus- Caravaggio
Chiesa
di San Luigi dei Francesi, Cappella Contarelli, The Martyrdom of Saint Matthew
(detail), 1599-1600, Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610) Il martirio
di San Matteo
Foto
de f_snarfel em flickr
Adobe
Make a Masterpiece - São Mateus e O Anjo, de Caravaggio
Caravaggio:
Principais obras
Caravaggio
e a trilogia de São Mateus em San Luigi dei Francesi
Arte
e crime em rota de convergência
Flerte da pintura e da escrita com o desregramento e
o delito marcou obras tão díspares como as de Caravaggio, Jean Genet e Rubem
Fonseca
Ana Miranda
especial para a Folha
Ana Miranda
especial para a Folha
Eu estava há poucos dias diante das três pinturas de
Caravaggio (1571-1610), na igreja de S. Luigi dei Francesi, em Roma, quando um
homem se aproximou com seu amigo e disse, com aquela ênfase bem italiana:
Caravaggio foi um delinquente! Levantei de novo os olhos para a vocação de são
Mateus, seu martírio e seu encontro com o anjo. Ali estava uma das maiores
obras da arte de todos os tempos. Aqueles personagens, banhados por uma luz
divina e refinada, de uma beleza absurda, eram a imagem da vida de Caravaggio.
A luz de Caravaggio é trágica. Também sua composição, que obedece a um rigoroso
equilíbrio, seus campos negros, seus elementos e a sua alma. Pintou são Mateus
com o aspecto de um lavrador rude e cujo analfabetismo é sugerido pela mão do
anjo que o faz escrever. O quadro foi rejeitado e substituído por um novo, no
nicho da igreja. Pintou a decapitação de Holofernes, o sacrifício de Isaac, a
cabeça da Medusa, a crucificação de são Pedro, Davi com a cabeça de Golias ou
Salomé com a de Batista, momentos dramáticos e nada edificantes das nossas
histórias sagradas. Inquieto, nômade, Caravaggio era um inconformista. Quando
conseguia algum dinheiro, saía pela cidade vestido no maior luxo, seguido de um
pajem a sustentar sua espada, atrás de alguém que aceitasse provocações. Não
conseguia dominar seu temperamento e tinha um desejo descontrolado de ferir.
Envolveu-se em episódios de violência com uma impressionante regularidade e
agravamento progressivo, culminando num assassinato. Passou sua vida ou nas
prisões ou em fuga. Como ele não tinha dinheiro para pagar modelos, olhava-se
no espelho e pintava seu próprio moreno e lascivo rosto, o que deu a sua obra
um caráter ainda mais autobiográfico. Nada em sua pintura induz à religiosidade
nem se desvia da condição humana. Mas leva a pensar em quanto a arte pode nos
redimir. Os casos de artistas criminosos não são raros na história. François
Villon, tido como um dos maiores poetas franceses, certamente o primeiro dos
maiores poetas líricos modernos franceses, levou uma vida desregrada de boêmio,
e presume-se que fazia parte de um bando de malfeitores. Em 1455 matou um padre
e foi perdoado por esse crime, mas em seguida envolveu-se num roubo a um
colégio, o que o obrigou a fugir.
Ruína física e morte
Passou um tempo vagabundeando pela França e acabou preso e condenado à morte, mas a sentença foi anulada -e ele, desterrado de Paris. Um de seus poemas mais conhecidos e belos, sua obra-prima e epitáfio, chama-se "Balada dos Enforcados". "Frères, humains, que après nous vivez" [Irmãos, humanos, que sobreviveis a nós". A poesia de Villon examina sua dissipada vida e expressa um interesse macabro pela ruína física e pela morte, mas também uma compaixão pelos padecimentos dos seres humanos, anotados com uma indiferença irônica. Jean Genet talvez seja o escritor mais marcado por uma vida maldita. Era mendigo, ladrão, homossexual e foi diversas vezes condenado por delitos graves. Escapou da prisão perpétua graças a Sartre, Camus e Cocteau, que articularam um movimento por sua libertação. Nasceu em 1910, na França, como filho ilegítimo; abandonado pela mãe, cresceu em orfanatos dirigidos por padres. Passou a adolescência em reformatórios e a juventude em prisões. Inscreveu-se na Legião Francesa, mas desertou, viveu perambulando, entregue ao roubo e à prostituição. Quando cumpria uma de suas penas, durante a Segunda Guerra Mundial, um dos muitos presos políticos que ali se encontravam deu-lhe um livro de Proust. Impressionado com a leitura, ele passou a escrever, ali mesmo na cela, suas recordações da infância e da adolescência e sua experiência no mundo do crime. Foi capaz de escrever uma obra grandiosa. Mas não foi a terrível realidade descrita nem o mergulho profundo em suas obsessões pessoais que fizeram dele um dos maiores escritores e dramaturgos da literatura universal, e sim a sua capacidade de transformar tudo isso em uma aventura literária, mítica e poética. Esforçou-se por um estilo "descarnado, com os ossos à mostra", em que celebrava o triunfo do mal, a realização dos desejos mais primitivos e espontâneos. Mas do fundo de sua prisão criava ambiciosas metáforas de concepção do mundo, num idioma ritual e suntuoso.
Um novo Genet?
A própria história foi definida, pelo historiador Edward Gibbon, como pouco mais do que "o registro dos crimes, loucuras e desventuras da humanidade". E a literatura também não é muito mais do que isso, desde Homero, que trucida os pretendentes de sua mulher Penélope, passando pelas mãos de lady Macbeth, manchadas de um sangue que não pode ser apagado, até "O Cobrador", de Rubem Fonseca, que mata para cobrar o que estão lhe devendo.
Na literatura recente, no Brasil, tenho notado a publicação assídua não apenas de livros de escritores que tratam do mundo da criminalidade mas também de obras escritas pelos próprios criminosos -ou pessoas que convivem com eles. Alguns presidiários têm encontrado tempo, estímulo ou inspiração para relatar suas vidas da maneira mais verídica e detalhada possível. Apesar de não terem partido de uma formulação proustiana, tudo se passa numa atmosfera tão envolvente quanto um pesadelo. São relatos realistas que buscam, em alguns casos, justificativas para os atos que descrevem: a infância infeliz, uma situação de miséria, a incompreensão de um pai bêbado.
O presidiário Luiz Alberto Mendes, condenado por assalto e assassinato, comenta seu primeiro roubo: "Para mim, estava certíssimo. Os chineses haviam me afastado da criatura que eu mais amava. Apenas cobrava deles, em dinheiro, a imensa infelicidade que me causaram. Era justo, fora por dinheiro, por não querer pagar um pouquinho mais para quem trabalhava havia tantos anos para eles, portanto, nada mais justo que tivessem aquele prejuízo. A única tristeza era minha mãe. Doía minha consciência, mas era mais forte que eu. Precisava viver minha liberdade" [em "Memórias de um Sobrevivente", Companhia das Letras".
Essas obras são importantes, pois mostram as motivações do roubo, do assassinato e o fascínio que o crime tem exercido na mente dos jovens que se sentem excluídos da vida glamourosa e luxuriante apresentada onde quer que se olhe. As razões do crime são complexas, mas os depoimentos impressionam pelas idéias que contêm acerca do valor da vida.
Os que escrevem esses livros são pessoas vulneráveis ao sentimento de marginalidade, que se vêem em busca da redenção pela palavra. São histórias de seres humanos. Ainda não sabemos se entre eles existe algum Genet ou um Villon.
Ruína física e morte
Passou um tempo vagabundeando pela França e acabou preso e condenado à morte, mas a sentença foi anulada -e ele, desterrado de Paris. Um de seus poemas mais conhecidos e belos, sua obra-prima e epitáfio, chama-se "Balada dos Enforcados". "Frères, humains, que après nous vivez" [Irmãos, humanos, que sobreviveis a nós". A poesia de Villon examina sua dissipada vida e expressa um interesse macabro pela ruína física e pela morte, mas também uma compaixão pelos padecimentos dos seres humanos, anotados com uma indiferença irônica. Jean Genet talvez seja o escritor mais marcado por uma vida maldita. Era mendigo, ladrão, homossexual e foi diversas vezes condenado por delitos graves. Escapou da prisão perpétua graças a Sartre, Camus e Cocteau, que articularam um movimento por sua libertação. Nasceu em 1910, na França, como filho ilegítimo; abandonado pela mãe, cresceu em orfanatos dirigidos por padres. Passou a adolescência em reformatórios e a juventude em prisões. Inscreveu-se na Legião Francesa, mas desertou, viveu perambulando, entregue ao roubo e à prostituição. Quando cumpria uma de suas penas, durante a Segunda Guerra Mundial, um dos muitos presos políticos que ali se encontravam deu-lhe um livro de Proust. Impressionado com a leitura, ele passou a escrever, ali mesmo na cela, suas recordações da infância e da adolescência e sua experiência no mundo do crime. Foi capaz de escrever uma obra grandiosa. Mas não foi a terrível realidade descrita nem o mergulho profundo em suas obsessões pessoais que fizeram dele um dos maiores escritores e dramaturgos da literatura universal, e sim a sua capacidade de transformar tudo isso em uma aventura literária, mítica e poética. Esforçou-se por um estilo "descarnado, com os ossos à mostra", em que celebrava o triunfo do mal, a realização dos desejos mais primitivos e espontâneos. Mas do fundo de sua prisão criava ambiciosas metáforas de concepção do mundo, num idioma ritual e suntuoso.
Um novo Genet?
A própria história foi definida, pelo historiador Edward Gibbon, como pouco mais do que "o registro dos crimes, loucuras e desventuras da humanidade". E a literatura também não é muito mais do que isso, desde Homero, que trucida os pretendentes de sua mulher Penélope, passando pelas mãos de lady Macbeth, manchadas de um sangue que não pode ser apagado, até "O Cobrador", de Rubem Fonseca, que mata para cobrar o que estão lhe devendo.
Na literatura recente, no Brasil, tenho notado a publicação assídua não apenas de livros de escritores que tratam do mundo da criminalidade mas também de obras escritas pelos próprios criminosos -ou pessoas que convivem com eles. Alguns presidiários têm encontrado tempo, estímulo ou inspiração para relatar suas vidas da maneira mais verídica e detalhada possível. Apesar de não terem partido de uma formulação proustiana, tudo se passa numa atmosfera tão envolvente quanto um pesadelo. São relatos realistas que buscam, em alguns casos, justificativas para os atos que descrevem: a infância infeliz, uma situação de miséria, a incompreensão de um pai bêbado.
O presidiário Luiz Alberto Mendes, condenado por assalto e assassinato, comenta seu primeiro roubo: "Para mim, estava certíssimo. Os chineses haviam me afastado da criatura que eu mais amava. Apenas cobrava deles, em dinheiro, a imensa infelicidade que me causaram. Era justo, fora por dinheiro, por não querer pagar um pouquinho mais para quem trabalhava havia tantos anos para eles, portanto, nada mais justo que tivessem aquele prejuízo. A única tristeza era minha mãe. Doía minha consciência, mas era mais forte que eu. Precisava viver minha liberdade" [em "Memórias de um Sobrevivente", Companhia das Letras".
Essas obras são importantes, pois mostram as motivações do roubo, do assassinato e o fascínio que o crime tem exercido na mente dos jovens que se sentem excluídos da vida glamourosa e luxuriante apresentada onde quer que se olhe. As razões do crime são complexas, mas os depoimentos impressionam pelas idéias que contêm acerca do valor da vida.
Os que escrevem esses livros são pessoas vulneráveis ao sentimento de marginalidade, que se vêem em busca da redenção pela palavra. São histórias de seres humanos. Ainda não sabemos se entre eles existe algum Genet ou um Villon.
Ana Miranda é escritora, autora de "Que
Seja em Segredo" (ed. Dantes), entre outros.
Paulinho
da Viola e Elton Medeiros cantam "Recomeçar" – 1979
THE
HOLLIES - HE AIN'T HEAVY, HE'S MY BROTHER – LEGENDADO
O
Caso Caravaggio
Gabriel Allon, lendário espião e restaurador de
arte, está em Veneza para recuperar um altar quando recebe uma convocação
urgente da polícia italiana. Seu amigo, o excêntrico negociante de arte Julian
Isherwood, deparou-se com uma cena de assassinato no lago Como e foi detido
como suspeito. Para salvá-lo, Allon só precisa realizar uma simples tarefa:
encontrar a pintura desaparecida mais famosa do mundo.
A questão é: às vezes, a melhor maneira de encontrar uma obra-prima roubada é roubando outra...
O homem assassinado é um espião inglês decadente com um segredo: vendia obras de arte roubadas para um misterioso colecionador. Entre as pinturas está a mais emblemática obra de todas: Natividade com São Francisco e São Lourenço, de Caravaggio.
Para recuperar o Caravaggio e descobrir a identidade do colecionador, Allon embarca em uma jornada ousada. Uma busca que vai se transformar em uma estimulante caçada — dos charmosos boulevards de Paris e Londres aos sórdidos submundos do crime de Marselha e Córsega, e, finalmente, até um pequeno banco privado na Áustria, onde um perigoso homem vigia a riqueza ilícita de um dos ditadores mais brutais do mundo. Ao lado de Allon está uma jovem corajosa que sobreviveu a um dos piores massacres do século XX, cuja ajuda será crucial para a conclusão desse mistério.
Suspense e Mistério
A questão é: às vezes, a melhor maneira de encontrar uma obra-prima roubada é roubando outra...
O homem assassinado é um espião inglês decadente com um segredo: vendia obras de arte roubadas para um misterioso colecionador. Entre as pinturas está a mais emblemática obra de todas: Natividade com São Francisco e São Lourenço, de Caravaggio.
Para recuperar o Caravaggio e descobrir a identidade do colecionador, Allon embarca em uma jornada ousada. Uma busca que vai se transformar em uma estimulante caçada — dos charmosos boulevards de Paris e Londres aos sórdidos submundos do crime de Marselha e Córsega, e, finalmente, até um pequeno banco privado na Áustria, onde um perigoso homem vigia a riqueza ilícita de um dos ditadores mais brutais do mundo. Ao lado de Allon está uma jovem corajosa que sobreviveu a um dos piores massacres do século XX, cuja ajuda será crucial para a conclusão desse mistério.
Suspense e Mistério
Rubem
Fonseca O Caso Morel
Descrição do livro
“Suspeito que o universo não é apenas mais estranho
do que supomos: é mais estranho do que somos capazes de supor.”
Fiel a essa máxima, O caso Morel não é apenas um ótimo entretenimento, um livro que arrebata o leitor da primeira à última linha. É, antes de tudo, uma das mais inquietantes reflexões sobre o sentido moral da arte.
Com a maestria que lhe é característica, Rubem Fonseca criou aqui um círculo de personagens inesquecíveis, da prostituta desamparada à grã-fina em busca de aventuras, passando pelo carismático Paul Morel, figura emblemática de um artista capaz de levar ao extremo da corrosão e da fúria sua inquietação frente à arte e ao mundo.
Fiel a essa máxima, O caso Morel não é apenas um ótimo entretenimento, um livro que arrebata o leitor da primeira à última linha. É, antes de tudo, uma das mais inquietantes reflexões sobre o sentido moral da arte.
Com a maestria que lhe é característica, Rubem Fonseca criou aqui um círculo de personagens inesquecíveis, da prostituta desamparada à grã-fina em busca de aventuras, passando pelo carismático Paul Morel, figura emblemática de um artista capaz de levar ao extremo da corrosão e da fúria sua inquietação frente à arte e ao mundo.
'Um homem de princípios': conto inédito de Rubem
Fonseca
Texto faz parte do último livro do autor, 'Calibre
22', que chega às lojas na próxima semana
POR O GLOBO
01/04/2017 4:30
Rubem
Fonseca, por Loredano - Cássio Loredano / Agência O GLOBO
Não gosto de matar barata, nem piolho, nem seres
humanos. Não mato por ódio, ciúme, inveja, medo, casos em que o mata-dor é
também vítima desse sentimento, ou, se preferem, dessa percepção, ou noção, ou
senso, ou consciência. Não conheço as pessoas que eu empacoto. Nada sinto por
elas, mas tenho meus princípios.
O Despachante, que eu nunca via pessoalmente — não
sabia se ele era branco ou preto, alto ou baixo, magro ou gordo —, en-viou para
mim do celular descartável uma foto com o nome e o endereço do freguês. O
Despachante depositaria na minha conta metade do pagamento adiantado e a outra
metade depois que eu fizesse o serviço.
O freguês, um sujeito gordo, calvo, na faixa dos
quarenta anos, morava na Zona Sul, num prédio na quadra da praia, e todos os
dias saía de manhã para tomar um cafezinho e comer pão de queijo, essa coisa
engordativa, numa loja de conveniên-cia (acho esse nome idiota) que ficava
perto da praça que tem o nome de um poeta e prosador português do século XIX.
Sei que as pessoas, em sua maioria, são ignorantes e não sabem de qual poeta
estou falando. Isso é bom.
O prédio tinha porteiro dia e noite. Eles se
revezavam de oito em oito horas. Ficavam atrás de vidros escuros, as pessoas da
rua não os viam, mas eles as viam nitidamente. Na porta de entrada da grade que
cercava o edifício havia uma pequena caixa protegida da chuva que recebia e
transmitia a voz, e um pino de campainha para o visitante apertar. Se fosse um
mora-dor, o porteiro acionava um comando eletrônico e abria a porta. Mesmo sendo
um parente do morador, o porteiro só o deixava entrar se recebesse autorização
expressa antes. No caso de um desconhecido, o porteiro perguntava pelo
alto-falante o nome e o seu objetivo. Se o desconhecido dissesse um nome que
não constava da lista de todos os moradores que o porteiro tinha à sua frente,
ele respondia secamente, “não mora aqui”. Esqueci de dizer que à noite uma luz
se acendia com o foco dirigido para a porta de entrada.
Resumindo: eu tinha que chumbar o freguês em outro
local que não fosse a sua casa.
Passei a ir bem cedo à loja de conveniência esperar
o freguês. Ele chegava impreterivelmente às dez da manhã, ia direto para o
balcão onde ficava a máquina de fazer café e o forno que assava o pão de
queijo, fazia o seu pedido e sentava numa mesa. Sempre a mesma mesa. A
garçonete trazia o café, o pacotinho de açúcar e o de chocolate e quatro pães
de queijo. Quatro! Barrigudo daquele jeito, ele certamente comia escondido da
mulher.
Sempre levo comigo a minha ferramenta, uma Beretta
M9 com carregador de quinze balas, num coldre especial colocado abaixo da
axila, sob o blusão. A empunhadura da Beretta fica-va para baixo. Dentro da
loja eu não podia chumbar o freguês. Meu desejo era que ele fosse para a praça
do poeta, mas o freguês voltava para casa. A mulher desses caras gordos sempre
manda neles. Aliás, todas as mulheres mandam no marido. Minha mãe não mandava
no meu pai porque ela morreu no parto. Eu matei minha mãe? Meu pai também
morreu cedo. Isso tudo eu conto algum dia.
Na terceira manhã em que eu observava
dissimuladamente o gordo comer os pães de queijo no posto, ele se levantou para
ir à caixa pagar a despesa, mas, ao passar perto da minha mesa, puxou uma
cadeira e sentou-se dizendo “bom dia”.
Já disse que sou puta velha. Respondi calmamente:
“Bom dia.”
“Meu nome é Xavier”, ele disse, “com xis”. “O meu é
José. Muito prazer.”
A voz do freguês era tranquila, um pouco espessa.
“Vou ser breve. Percebi que o senhor nestes três
dias aqui no posto me observa dissimuladamente. Isso significa que tem um
objetivo, que eu suponho qual seja. Sei que o senhor é um... um matador
profissional.”
Meneei a cabeça.
“Tenho uma proposta a lhe fazer”, ele disse. “Sim.”
“Posso fazer a proposta?” “Sim.”
“Quero que você mate a minha mulher. Pago o dobro, o
triplo do que você iria receber se me matasse.”
Ele agora já não me tratava mais de senhor,
acreditava que como eu seria seu empregado, ou servidor, não precisava mais ter
deferência, consideração por mim.
“Quanto e onde?”, perguntei.
Ele tirou um maço de notas de cem dólares do bolso.
“Me paga depois. Onde será feito o serviço?”
“Na minha casa. Vamos juntos, eu toco a campainha,
ela espia pelo olho mágico, vê que sou eu e abre a porta. Ela não abre a porta
para ninguém. O senhor mata a minha mulher. Sua arma tem silenciador?”
“Evidentemente”, respondi.
“Nós entramos, abrimos as gavetas e mexemos nos
armários, para fingir que foi um assalto.”
“Essa ideia é muito boa”, eu disse.
“Depois eu te pago e vamos embora. Eu vou ao
supermerca-do fazer umas compras, e você sai de novo escondido no carro. Quando
eu voltar, vejo a minha mulher morta, chamo a polícia...”
“Perfeito. Quando?”
“Agora”, ele respondeu. “Vamos entrar pela garagem,
o se-nhor fica escondido no banco de trás. O carro está aqui no posto. Já disse
que vou ao supermercado e sempre volto carregado de compras, inutilidades que a
megera me obriga a comprar.”
Megera. O cara não gostava mesmo da mulher.
Entramos pela garagem, subimos, saltamos no hall do
andar dele.
Não sei se já disse, mas aquele prédio tinha apenas
um apar-tamento por andar. Tirei a minha Beretta do coldre.
“Um momento, não toca ainda a campainha”, eu disse,
“espera eu colocar o silenciador”.
Coloquei o silenciador, destravei a Beretta e dei um
tiro na cabeça do Xavier. Eu sei o lugar na cabeça que apaga o freguês.
Segurei-o para que não fizesse barulho ao cair.
Saí pela garagem, usando os óculos escuros do morto.
Os vi-dros escuros não deixavam ver direito quem dirigia o BMW. Es-ses ricos só
usam carros bacanas.
Deixei o carro perto do supermercado. Fui andando
pela rua.
Eu tenho os meus princípios, já disse. Não mato
mulher, criança e anão. E sou honesto.
Referências
https://imagens.publicocdn.com/imagens.aspx/284220?tp=UH&db=IMAGENS&w=823
https://www.publico.pt/2009/10/30/culturaipsilon/noticia/descoberto-autoretrato-de-caravaggio-no-quadro-baco-1407586
https://i.pinimg.com/236x/dc/f8/bb/dcf8bbc10e37a07d48f9f5be931cbc66.jpg
https://i.pinimg.com/564x/53/8e/ce/538ece66368ebdb8cfc3e1ef766adf48.jpg
https://youtu.be/6Ev1iPU2UAM
https://youtu.be/IdoWped65CE
http://post-italy.com/caravaggio-roma-san-luigi-dei-francesi/
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1703200215.htm
https://youtu.be/pBdqU5uf_Vw
https://youtu.be/gIwtLumZeZY
https://www.skoob.com.br/o-caso-caravaggio-548609ed558736.html
https://ogimg.infoglobo.com.br/in/21143869-b49-dba/FT460A/x33920925_PVRubem-Fonseca-por-Loredano.jpg.pagespeed.ic.c2ryR-e7hF.jpg
http://lelivros.love/book/download-o-caso-morel-rubem-fonseca-em-epub-mobi-e-pdf/
https://ogimg.infoglobo.com.br/in/21143869-b49-dba/FT460A/x33920925_PVRubem-Fonseca-por-Loredano.jpg.pagespeed.ic.c2ryR-e7hF.jpg
https://oglobo.globo.com/cultura/livros/um-homem-de-principios-conto-inedito-de-rubem-fonseca-21143695
http://www.telegraph.co.uk/culture/art/art-news/6468623/Tiny-Caravaggio-self-portrait-revealed-by-technology.html
http://www.telegraph.co.uk/culture/art/art-news/6468623/Tiny-Caravaggio-self-portrait-revealed-by-technology.html
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