quarta-feira, 9 de abril de 2025

Ora, e não é mesmo?

No Coração de Encantado Por Cyro de Christo Domingo, 6 de abril de 2025. Tive, como de hábito nas tardes vazias e inevitavelmente sem rumo dos domingos modernos, o impulso de ligar a televisão. Não buscava notícia, nem sequer distração. Apenas um ruído qualquer que me amparasse a alma enquanto o tempo — esse velho e íntimo funcionário público do tédio — seguia carimbando as horas. Passei por programas culinários, entrevistas ocas, esportes em replay. Quando, de súbito, deparei-me com uma cena que, não fosse ela transmitida em sinal aberto e acompanhado de repórter engravatado, eu tomaria por delírio: uma senhora de 103 anos, dentro do peito de um Cristo. Não era figuração. Tratava-se de um monumento — desses que as cidades do interior constroem com uma fé que desafia o ceticismo das capitais. Um Cristo de 43 metros, portanto cinco a mais que o famoso do Corcovado, fincado na cidade de Encantado, no Rio Grande do Sul. Havia, no peito da estátua, um recorte em forma de coração. E foi ali que ela, a senhora, a mocinha, estava. Não sei seu nome. Tampouco creio que ela tenha feito questão de dizê-lo. Mas é fato que o repórter, movido talvez por uma piedade jornalística, perguntou-lhe o que sentia. E ela, com a naturalidade com que se fala do tempo ou do preço do pão, respondeu: "É até pecado morrer." Pus-me então a refletir — ato recorrente, e que raras vezes me leva a grandes conclusões, mas que me consola, como uma carta escrita e jamais enviada. Aquela senhora — que casou aos vinte e desde então, segundo ela própria, só trabalhou — encontrava-se ali, finalmente, diante do mundo, do céu e do próprio coração. E naquele instante, confessou sem cerimônia o que muitos de nós passamos a vida calando: o desejo secreto de continuar. Não por medo da morte. Mas por gratidão à vida. Imaginei-a em sua juventude: de tranças presas com fita de cetim, talvez à beira de um riacho qualquer, sonhando com o tempo. Depois, casada, mãe, avó, bisavó — talvez até trisavó — dobrando lençóis e guardando aniversários como quem arquiva memórias num fichário desbotado. E agora ali, no coração do Cristo de Encantado, a vista se abrindo como promessa e a vida, por um instante, parecendo nova outra vez. Cristo Protetor de Encantado – onde a eternidade piscou para uma menina de 103 anos. Eis o curioso: ela recusou-se, com pudor e picardia, a ser chamada de Encantada. Disse que não era chegada a tanto. Que ainda tinha lenha pra queimar, retrato pra tirar e bolo pra repartir. Que Encantado esperasse, e que o encantamento final viesse apenas quando não houvesse mais broa quente na mesa. Confesso que, mesmo sem conhecê-la, senti por ela uma ternura inesperada. Como se Belmiro Borba, meu velho alter ego, levantasse os olhos de um de seus cadernos e, ao vê-la ali, suspirasse com respeito e ironia: “E pensar que nós, amanuenses, passamos décadas inteiras procurando uma frase que valesse o dia. Ela a disse em segundos.” Pois é isso: há frases que parecem ter sido escritas por anjos distraídos. E há pessoas que as dizem sem pretensão, apenas por estarem vivas. "É até pecado morrer." Ora, e não é mesmo? Se desejar, posso adaptar esta crônica para publicação impressa, como se fosse uma entrada esquecida nos arquivos de Belmiro Borba, redescoberta por Cyro de Christo num envelope amarelado. Ou ainda, criar uma edição fac-símile, como se tivesse saído das páginas de um diário antigo. Como gostaria de eternizar essa mocinha de Encantado? ----------- A Terra Caiu No Chão | Poema de Zé da Luz com narração de Mundo Dos Poemas Mundo Dos Poemas 9 de jan. de 2021 Poesia e poema de autor português. Severino de Andrade Silva, mais conhecido como Zé da Luz, foi um poeta popular brasileiro que nasceu em Itabaiana, agreste paraibano, e faleceu neste 12 de fevereiro, em 1965, na cidade maravilhosa. Zé da Luz, que publicava suas obras em forma de literatura de cordel. é, inegavelmente, menos conhecido que Patativa do Assaré. Mas também inegável é sua genialidade, que pode sim ser equiparada a do poeta assareense. Diferente de Patativa, Zé da Luz publicou apenas um livro, chamado “Brasil Caboclo”, em 1936. O cordelista produziu cordéis safados, bem humorados e também trágicos, mas sempre telúricos. Assim como Patativa, é tido como um dos realizadores da poesia matuta, que se consagra no folheto ou na cantoria, mas que também mostra sua força diante da poesia tida como erudita.

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